Rússia sairá enfraquecida da guerra
O especialista em relações internacionais Miguel Monjardino sustenta que, independentemente do que acontecer na Ucrânia, a Rússia sairá enfraquecida da guerra, com um reforço do eixo euro-atlântico e a transição acelerada para um mundo multipolar.
Em entrevista à Lusa, no dia em que apresenta o seu novo livro - "Por Onde Irá a História?" - o professor de Geopolítica e Geoestratégia da Universidade Católica considerou que o Presidente russo, Vladimir Putin, atacou a Ucrânia, em 24 de fevereiro do ano passado, achando que iria "ganhar rapidamente e que alteraria a distribuição de poder na Europa a favor da Rússia".
No entanto, quase um ano depois, não só o conflito prossegue, como se assistiu a "um reforço da distribuição do poder a favor da aliança euro-atlântica na Europa, acrescida de uma mobilização muito grande da sua base industrial de apoio à Ucrânia", a que se acrescentaria o pedido de adesão da Suécia e a Finlândia da NATO.
Este reforço, para Miguel Monjardino, é "uma das surpresas políticas da guerra" e, nesse sentido, "independentemente do que venha acontecer na Ucrânia, a Rússia terá à sua frente uma situação muito diferente e bastante mais desfavorável do que aquela que tinha a 23 de fevereiro do ano passado".
Apesar do apoio dos países aliados de Kiev, o especialista em relações internacionais é mais cauteloso quanto ao risco de uma confrontação direta entre a NATO e Rússia.
"Estamos a assistir a uma forma muito curiosa de uma guerra limitada e a limitação desta guerra interessa à Rússia, como interessa a todos os países da NATO", explicou, o que tem sido possível manter até agora, afirmando que os países europeus "estão a agir de uma forma muito curiosa e não forneceram à Ucrânia todo o material que a Ucrânia precisaria desde o início.
Mas vão enviando progressivamente mais material militar e "testando a reação russa e criando factos no terreno", declarou, acrescentando: "Se nos dissessem há um ano que a Alemanha iria fornecer carros de combate, veículos blindados ou sistemas integrados de defesa aérea à Ucrânia, ninguém teria acreditado".
Esse é um dos motivos que o leva a ter alguma prudência na antecipação do futuro, "porque daqui a seis meses podemos estar numa situação muito diferente, em que progressivamente seja fornecido mais material à Ucrânia", o que dependerá muito das circunstâncias do terreno e da avaliação política que for feita quer em Moscovo, quer nos países europeus e nos Estados Unidos.
No seu livro, Miguel Monjardino aborda a guerra da Ucrânia que conduzirá "à evolução do sistema internacional num sentido ou noutro", como "um catalisador da transição, que já estava em curso", e que será acelerado.
Nesta transição, "a não ser que a Ucrânia entre em rapidíssimo colapso, a Rússia sairá enfraquecida", declarou: "Vamos imaginar um cenário em que a Rússia controla todo o Donbass ucraniano, mesmo assim a Ucrânia sobreviverá como um Estado independente e será progressivamente integrada no espaço euro-atlântico".
O especialista recordou que o próprio ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger já veio dizer que não faz sentido, nas atuais circunstâncias, a neutralidade ucraniana que ele propôs há um ano.
"Também acho que em função do preço humano, financeiro e tecnológico industrial, que no fim de contas a Rússia tem de pagar para continuar a fazer esta guerra, esta será uma Rússia mais fraca no sistema internacional e será também uma Rússia mais dependente da China até ao final desta década", reforçou.
Durante a confrontação, segundo o professor universitário, "claramente há países que vão tirar partido e já estão a tentar tirar partido desta transição para uma nova configuração do sistema internacional", analisou, referindo-se à consolidação do polo euro-atlântico, mas não só.
"Nós na Europa, não devemos ter a ilusão de que países como a Índia, a África do Sul, o Brasil, o México e a Indonésia pensam da mesma forma que nós e que aceitarão a ordem internacional como está organizada agora", sustentou, adicionando que essa "seria uma ilusão perigosa" e que o mundo caminha para uma maior multipolaridade, na qual, insistiu "a Rússia será menos influente do que pensava quando começou esta guerra".
Guerra é existencial para Moscovo e Kiev
Miguel Monjardino considera a guerra na Ucrânia existencial quer para Moscovo quer para Kiev e, na ausência de negociações, prevê uma intensificação significativa do conflito, numa primavera "muito sangrenta". Sustentou, em entrevista à Lusa, que a guerra iniciada há quase um ano com a invasão russa da Ucrânia "é vista como existencial, quer por Moscovo, quer por Kiev".
Esta ideia é justificada pelo entendimento do Kremlin de que "a Rússia só será aquilo que quer ser dominando a Ucrânia", enquanto o país invadido sente "uma oportunidade única na sua história secular de ganhar de uma vez por todas a sua independência em relação a Moscovo".
Enquanto se mantiver este cenário, "será muito difícil haver um acordo que ponha fim a esta guerra, a não ser que as partes mudem a sua avaliação política ou fiquem ou comecem a ficar sem os meios económicos, financeiros e militares que lhes permitam continuar a combater".
É nesta fase que estamos, de acordo com o professor de Geopolítica e Geoestratégica da Universidade Católica, que prevê "uma intensificação muito significativa desta guerra" numa primavera "muito sangrenta na Ucrânia".
A invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro do ano passado, segundo Monjardino, tem a ver com a evolução interna do regime russo e com a forma como avaliou o que estava a acontecer na Ucrânia.
"Moscovo entendeu que este era o momento oportuno para tentar resolver de uma vez por todas a questão ucraniana, ou seja, [o Presidente russo] Vladimir Putin optou por uma guerra preventiva", num sentido paradoxal, em que, por um lado, "avaliou a Ucrânia como um Estado falhado que sucumbiria rapidamente a uma ofensiva russa", mas por outro, também viu esta Ucrânia a caminhar cada vez mais no sentido da sua integração no mundo europeu".
Este quadro, do ponto de vista de Moscovo, "foi considerado inaceitável", prosseguiu, porque "esta é uma a Rússia que não se concebe, não se vê como sendo Rússia sem dominar a Ucrânia, sobretudo Kiev".
Esta ambição é justificada "por questões culturais e religiosas", mas está também relacionada com "o mito fundacional da Rússia" e ainda com razões de geografia geopolítica.
"No fim de contas, a Ucrânia foi sempre vista como absolutamente essencial para a defesa da Rússia. E também como Vladimir Putin tornou muito claro, Moscovo ambiciona recuperar uma esfera de influência regional na Europa", que considera "essencial para a sua legitimidade interna, mas também como potência internacional".
A perspetiva negocial está, por agora, afastada, porque ambas as partes acreditam numa solução militar, dependendo dos respetivos objetivos políticos.
Putin "curiosamente tem sido ambíguo em relação a isto, o que tem a ver com a necessidade de preservar alguma margem de manobra", mas "o mínimo absoluto" parece ser a preservação do controlo do território que conquistou até agora.
A Ucrânia, por seu lado, "quer recuperar todo o território" perdido a partir de 24 de fevereiro do ano passado e o que tinha perdido de facto após 2014, ou seja, a Crimeia e uma parte Donbass.
"Enquanto ambos os lados tiverem esses objetivos políticos maximalistas, eu receio que a guerra vá obviamente continuar", afirmou o especialista em relações internacionais, recordando que haverá eleições presidenciais na Ucrânia em 2024, o que "vai diminuir a margem de manobra do [Presidente ucraniano] Zelensky para qualquer tipo de concessões" e o mesmo acontecerá em Moscovo, "porque a influência e o poder de Vladimir Putin no regime dependerá bastante desta guerra".