Crónicas

A mulher do mestre pedreiro

Não era de luxos, nem se permitia a extravagâncias como usar calças ou pintar os lábios. Para ela, que tinha quase 40 anos quando se deu a revolução, a liberdade chegara tarde para lhe mudar os hábitos

A minha mãe era uma senhora à moda antiga e tinha, por isso, uma gaveta da cómoda cheia até cima com roupa de dormir que nunca usava, que era tudo para o caso de ficar doente e ir parar ao hospital. E, todas as quartas-feiras, tirava do guarda-fato uma blusa e uma saia, das de sair, e calçava os sapatos bons para se apresentar na casa de bordados de cabelo penteado e com Tokalon a disfarçar os sinais da idade.

Não era de luxos, nem se permitia a extravagâncias como usar calças ou pintar os lábios. Para ela, que tinha quase 40 anos quando se deu a revolução, a liberdade chegara tarde para lhe mudar os hábitos, mas lembro-me de que comprou um secador de cabelo antes da varinha mágica e da torradeira. É que conseguia bem passar a sopa no ralador, já o cabelo ficava outra coisa com escova e secador.

A casa podia estar virada ao contrário: a roupa a acumular na mesa de engomar, a sala com os embrulhos do bordado por cima das cadeiras, o almoço em risco de queimar e, ainda assim, a minha mãe mantinha a rotina dos dias em que ia à cidade. Tomar banho, depois passar a ampola azul ou lilás no cabelo e espalhar à pressa o creme para esconder as manchas do sol.

A porta do guarda-fato ficava aberta, os sapatos de andar em casa esquecidos em frente ao espelho. O caos. Aquela espécie de karma que a seguia para todo o lado ficava para trás, enquanto fechava a porta da corredora e descia de dois a dois os degraus da entrada. Dois sacos em cada braço, mais a carteira ao ombro, cheia de entulho de contas, cotos de embalagens de medicamentos e com o dinheiro espalhado em envelopes, tudo para enganar os ladrões.

A minha mãe desconfiava das multidões da cidade, dava a impressão que aqueles telhados que se avistava lá de cima pertenciam a outro lugar, muito longe e com pessoas muito diferentes de nós. Pelo menos parecia, era uma gente mais da alta, com outros costumes e, para todos os efeitos, ela, aquela senhora de cabelo grisalho, era apenas uma dona de casa, filha de agricultores e mulher de um mestre pedreiro.

E que se tornara agente de bordados aos 48 anos para ter mais dinheiro e ser mais independente, mas custava a ganhar e tinha medo de o desperdiçar, perder ou de ser roubada por algum mandrião numa cidade que não dominava tão bem assim. Lembro-me que todas as quartas-feiras à noite, depois de ter feito as contas das linhas, de ter descontado o desemprego e entregue os valores às bordadeiras, fazia o balanço às despesas.

Vasculhava a carteira, somava o supermercado, tirava a conta da farmácia, mais os três pratos de sopa que tinha comprado avulso no Baganho e a roupa interior na Casa Paris para garantir que a tinham mesmo roubado. Ou se calhar tinha perdido, era a desgraça, tinham voado quase cinco contos, o que ia ser de nós todos. E nem o pai se atrevia a contrariar, mas piscava-me o olho, que o dinheiro ou aparecia dentro de envelope dobrado em dois ou tinha justificação.

E era certo que voava, mas isso era mais por ser pouco e a vida estar cara, assim mais ou menos como agora, até com inflação.