Vidas paralelas
Era ainda um miúdo quando este episódio se passou e não apenas nunca me esqueci dele, como na semana passada ele me voltou à memória de forma abrupta.
Não sei porquê mas tenho ideia de que naquela altura não havia tantas instituições a quem doar roupa ou bens aos mais carenciados e, talvez por isso, de tempos em tempos alguém batia à porta da casa dos meus pais a pedir algo. Um dia, lembro-me bem, um miúdo da minha idade que eu conhecia de vista por andar com frequência nas ruas vizinhas, veio tocar-nos à porta a pedir. E dessa vez, para além de uma sandes preparada na hora, dei-lhe um par de sapatilhas de que gostava e que ainda se encontravam em muito bom estado.
Dias mais tarde vi-o com elas calçadas e comecei a perceber, na pele e ainda muito jovem que a vida dava, à partida, condições diferentes a miúdos que à partida eram iguais. Embora desde sempre aquela cara nunca me fosse estranha, a verdade é que aquele rapaz nunca me olhou, olhos nos olhos, mais do que um par de segundos. Percebia-se que tinha casa, algum teto para morar, mas na prática era um miúdo da rua.
Os anos passaram e eu deixei de frequentar tanto aquela zona e começámos a cruzar-nos muito raramente. Ele, como eu, foi crescendo e sempre que o vi foi sentado na rua, a pedir.
Não sei se algum dia teve ajuda social e a rejeitou, não sei que rumos tomou a sua vida, que oportunidades poderá ter desperdiçado ou que possa nunca ter tido sequer, mas agora e ao fim de muito tempo, voltei a vê-lo. A dureza da vida que leva fá-lo parecer mais velho, mas na verdade anda na casa dos 50 anos e continua a pedir na rua. Aquela cara que sempre me habituei a ver naquela condição e que em jovem eu não percebia bem o porquê de tamanha injustiça, hoje continua por aí, deambulando e seguramente sem qualquer certeza sobre o dia de amanhã.
Ao passar por ele na semana passada e ao olhá-lo fiquei com a ideia de que ele não se lembraria da minha cara. Se calhar nunca se lembrou porque nunca decorou a minha face entre as muitas a quem toda a vida pediu ajuda. Ao revê-lo nestes dias senti uma espécie de culpa por nunca me ter faltado a mim, comida e condição para estudar e evoluir, coisa que àquele rapaz (para mim será sempre aquele rapaz) provavelmente nunca teve, nem nunca conseguiu ambicionar.