Rússia perdeu estrategicamente a guerra mas regime pode sobreviver
A Rússia já perdeu estrategicamente a guerra com a Ucrânia, independentemente do seu desfecho, ao tornar-se "tóxica" no ocidente e sem ter ganho amigos totalmente fiéis noutras latitudes, indicou à Lusa o investigador Arkady Moshes.
"Por um lado, e para além da duração da guerra e o seu desfecho, a Rússia já perdeu estrategicamente. Perdeu economicamente, perdeu os seus mercados de energia que não vão regressar, perdeu as perspetivas de investimento pelo dinheiro do ocidente, perdeu uma espécie de 'poder suave' que tinha no ocidente, incluindo o poder para corromper", sustentou em entrevista por telefone à Lusa o diretor do programa para a Europa de leste e Rússia do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais (FIIA), sediado em Helsínquia.
"A Rússia tornou-se tóxica no ocidente, e não ganhou necessariamente amigos noutras latitudes. O sul global está a observar o que se passa, mas não tem pressa em ajudar a Rússia" adiantou. "Mesmo a China, mesmo a Índia, tendem a equilibrar as suas respostas e outros países, em África ou na América Latina, não podem simplesmente substituir aquilo que o ocidente oferecia à Rússia em termos económicos", adiantou Moshes.
Uma "derrota estratégica" que na perspetiva de Arkady Moshes, 56 anos e também membro do Programa de Novas Abordagens sobre Pesquisa e Segurança na Eurásia (PONARS, Eurásia), se pode prolongar durante décadas.
"Porque a Rússia se tornou numa entidade 'tóxica', os passaportes russos tornaram-se 'tóxicos', algumas vezes de forma injusta... Em alguns exemplos que conheço, mesmo no meio académico, os russos são encarados com suspeição e cada vez mais cidadãos estão a ser responsabilidade ou mesmo culpados por aquilo que o Governo está a fazer", disse Moshes.
Uma situação que pode comprometer por muito tempo o futuro do país, sublinha.
"É muito mau para o futuro do país. Em termos demográficos, quando se pensa nas centenas de milhares de jovens que vão morrer, que não terão filhos... A Rússia não está numa situação em que possa suportar isso".
Arkady Moshes deteta um novo "paradoxo" na situação interna do grande país euro-asiático: "Estrategicamente, a Rússia está a perder muito. Mas o paradoxo é que o regime pode continuar. É um regime autoritário consolidado, a caminho de se tornar totalitário, a sua propaganda funciona, ainda tem dinheiro para prosseguir a sua política, e há muito pouca resistência da sociedade".
O investigador recorre a uma recente sondagem na Rússia que indica o apoio da maioria da população ao prosseguimento da guerra, mas com metade a defender em simultâneo negociações de paz, respetivamente 70% e 50% dos inquiridos.
No entanto, sublinha que o atual contexto é diverso do registado há apenas dois anos.
"A oposição foi reprimida, não existem forças políticas como existiam há dois anos, que poderiam mobilizar as oposições numa ação política. Os seus líderes estão praticamente silenciosos, sem coragem para contestar", frisou.
O controlo quase absoluto da situação pelo regime constitui para o investigador o principal fator a nível interno, e que se acentuou com o início da invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.
"O regime tem o controlo, e enquanto a situação continuar mais graves e mais longas serão as consequências para o país. É a realidade em que vivemos. De momento, não penso que exista a perspetiva de uma mudança de regime na Rússia, irá reproduzir-se no poder e se ocorrerem eleições em março próximo, muito provavelmente [o Presidente Vladimir] Putin continuará no poder", concluiu.
Eventual derrota da Rússia não deve implicar "ameaça existencial"
A eventual derrota de Moscovo na guerra em território ucraniano poderá ajudar a Ucrânia a restabelecer a integridade territorial mas não deverá converter-se em "ameaça existencial" para a Rússia, considerou o investigador.
"Quando alguém diz 'derrotar a Rússia', provavelmente não entende o que quer dizer. Porque ninguém, provavelmente no subconsciente, pensa que essa derrota poderia implicar a ocupação da Rússia por tropas da Ucrânia ou outras. Isso é impossível, é um país com armas nucleares", indicou ainda.
"Assim, por 'derrota' provavelmente quer-se significar uma derrota na linha da frente que poderia ajudar a Ucrânia a restabelecer a sua integridade territorial. Mas não uma derrota que atingisse um nível que se tornasse numa ameaça existencial para a Rússia", precisou.
A perspetiva de um desmembramento da Rússia é afastada pelo investigador, que no entanto define a atual situação de "paradoxal".
"Claro que na Rússia se regista a mobilização de centenas de milhares de homens, para que se tornem soldados profissionais, mas é um paradoxo e uma contradição, porque por outro lado o Governo que fala em ameaça existencial é o mesmo que continua a não designar a guerra como uma guerra".
Desta forma, enfatiza, será contraditório falar em ameaça existencial e em operação militar especial.
Arkady Moshes denota outra contradição na posição do Governo russo na sua relação com a sociedade.
"A mobilização da população foi necessária por não existirem voluntários em número suficiente para combater. É um sério sinal da fraqueza da propaganda a nível interno, algo importante para entender".
De momento, considera, os alertas sobre uma "ameaça existencial" não terão um impacto determinante entre a população.
"É complexo, mas a minha análise sobre a tendência e a disposição da opinião pública na Rússia é que o Governo pode considerar que a atual situação implica uma ameaça existencial para a Rússia, mas a maioria do país não pensa assim. Há cidades perto da linha da frente que têm sido bombardeadas, mas a maioria dos russos prossegue com uma vida normal".
Uma situação algo inversa será a registada na Ucrânia, e quando se cumpriram 11 meses de conflito na sequência da invasão russa de 24 de fevereiro de 2022, apesar de Kiev ser apontado por diversos analistas como intérprete de uma "guerra por procuração" com crescente influência política e militar norte-americana, numa lógica de escalada sem fim.
Arkady Moshes contesta esta visão. "Não creio que a Ucrânia seja manipulada, porque a vontade e a disposição para lutar por si e pelo seu país é uma questão nacional. Diria que há um ano ninguém acreditava que a Ucrânia poderia lutar de uma forma tão vigorosa, e sem a vontade para lutar nenhuma influência ou armas norte-americanas seriam capazes de fazer a diferença".
O académico assinala que num conflito com estas características "é preciso haver pessoas prontas a morrer", um fator crucial e que originou equívocos.
"Isso não foi provavelmente entendido pela maioria das pessoas, a começar por Moscovo, mas também nos lembramos como começaram os norte-americanos, a tentar retirar o Governo ucraniano de Kiev", indicou.
"Houve uma má interpretação sobre o empenho dos ucranianos em combater, o fator primordial é a moral das tropas e da população ucranianas e a vontade de combater", concluiu.