Com a escola às costas
Um docente não trabalha para a sua glória pessoal, mas para que os seus alunos brilhem, realizando-se
Há tempos, regressando do continente, num avião apinhado de gente, num lugar perto do meu, chamou-me a atenção a azáfama de uma passageira sobre uma pilha de folhas manuscritas. Um olhar mais atento permitiu-me verificar que se tratava de uma professora a corrigir testes dos seus alunos. O nome de uma escola da RAM e a disciplina, ao cimo, não deixavam margem para dúvidas.
Foi uma hora e meia para trás e para a frente, a riscar, a comentar, a cotar. Ao seu lado, dois elementos da família ocupados de outra forma, mas sem a incomodar. No final, não foram muitos os testes corrigidos, mas não tenho dúvida de que deu o tempo daquele voo noturno por bem ocupado.
Não pude deixar de ligar este episódio com a luta dos professores, no continente, e com as reivindicações do SPM, na RAM. Sim, porque, se é certo que lá a situação dos docentes é bem mais grave, aqui, não faltam razões de queixa. Na verdade, não se resume tudo ao processo da recuperação do tempo de serviço. Os problemas destes profissionais são muito mais profundos, mas podem ser detetados a olho nu, por todo o lado. Só quem anda distraído não vê.
Por exemplo, o horário de 22 ou 25 horas de trabalho e as férias durante três meses são mitos criados por quem vê um espetáculo e pensa que os artistas só trabalham àquela hora, ou de quem vê um campeão triunfar e julga que tudo se resume àquele momento de apoteose. Um campeão olímpico que vê hastear a bandeira e ouve o hino do seu país chora de emoção, não apenas pelo orgulho patriota, mas, sobretudo, porque, naquele momento, lhe perpassam, em relâmpago, as memórias de tantos momentos difíceis em que desistir parecia ser a única saída.
Por sua vez, um educador ou professor, após duros anos de trabalho, tantas vezes invisível, emociona-se porque as crianças ou os adolescentes que exigiram tanta dedicação, um dia, atingem os seus objetivos e estão mais bem preparados para enfrentar os desafios da vida, graças ao seu esforço. Marcante esta forma de realização profissional que advém do sucesso dos outros e não do triunfo individual. Efetivamente, um docente não trabalha para a sua glória pessoal, mas para que os seus alunos brilhem, realizando-se.
Para que tal aconteça, tantas horas com a escola às costas! Testes para corrigir, à noite, durante o dia; durante a semana ou ao fim de semana; em casa, no avião, no café, no centro comercial…! Quantas horas, cada turma? E, antes, quanto tempo para elaborar aqueles testes? Quantas leituras, quantas horas de preparação? Onde pesquisou as imagens? De quem eram o computador e a internet que usou? Contabilizou todas as horas trabalhadas?
Quantas relações prejudicadas pela falta de tempo para a família?
Tanto para contar para além da sala de aulas! Só poderemos conhecer o trabalho dos professores e dos educadores se entrarmos nas suas casas.