Análise

Por uma Igreja sem equívocos

A tal igreja de janelas abertas tem muito trabalho a fazer daqui para a frente

A Igreja não é só padres e bispos e muito menos um conjunto de rituais praticados em ladainha aos domingos e dias santos. Não pode ser só isso. Muitos dos seus membros têm-se portado muito mal e prejudicado muitos crentes e não crentes, ao longo dos anos. Não representam a maioria, mas são mais do que alguma vez imaginamos. Diversos papas – facto! - pediram perdão pelas atrocidades cometidas em nome de uma fé distorcida. Dois, pelo menos, já pediram desculpa pelos abusos sexuais a que foram sujeitas milhões de vítimas pelo Mundo fora. A Igreja é feita de gente e as pessoas erram, cometem crimes, é verdade (“Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”). Mas a Igreja tem uma responsabilidade acrescida, detém um enorme poder de influência e é por isso que os seus líderes e os seus membros não podem meter a cabeça na areia perante a monstruosidade. Dispensamos o cinismo e o amorfismo que durante penosas décadas dominou o caminho da hierarquia eclesiástica em Portugal. Dispensamos a indiferença que muitos dos seus membros mais ilustres insistem em seguir perante o que nos desassossega: a Igreja tolerou, encobriu e quase normalizou o crime mais abjecto da humanidade: abusar de crianças indefesas. Não chega um simples perdão, distante, generalista e formal. Tem de ir ao encontro de cada uma das vítimas, tem de saber como cada uma está. Mais: tem de perguntar em que pode ajudar. Isso sim é Igreja. Ir à procura de quem sofreu as piores sevícias às mãos de religiosos imunes ao sofrimento e fiéis a caprichos doentios. Numa terra como a nossa, onde a esmagadora maioria professa o catolicismo, a cúpula deve fazer mais do que apoiar-se nos comentários lacónicos, generalistas e de circunstância, esperando que ‘isto’ passe depressa. A Diocese do Funchal tem um bispo e dois bispos eméritos. O titular, D. Nuno Brás, que nunca foi um defensor entusiasta da criação de uma comissão contra os abusos na Diocese do Funchal, tem andado em constante ziguezague. Primeiro recusou-se a comentar o relatório da comissão independente liderada por Pedro Strecht que reportou 14 casos de abusos na Região, dizendo que os madeirenses iam ter de esperar para conhecer a sua posição perante a monstruosidade. Viu-se depois forçado a debitar umas palavras para a televisão. Na quarta-feira passada, e perante a pergunta do DIÁRIO se iria marcar presença na vigília daquela noite, que reuniu meia centena de pessoas no Largo do Colégio, mandou dizer que iria fazer-se representar por um padre reformado. Na tarde daquele dia, mudou de opinião e afirmou, uma vez mais frente às câmaras, que afinal iria marcar presença. O prelado tem tido dificuldade em expressar-se de forma clara, perceptível e audível contra os abusos perpetrados no interior da Igreja. Lamentavelmente, porque jamais o que é aberrante pode ser normalizado. Todos nos recordamos que outro bispo do Funchal, agora emérito, esteve na primeira linha de defesa do padre Frederico Cunha, condenado pela morte de um jovem no Caniçal e mais tarde foragido da prisão. Pediu perdão pelo mal que o sacerdote por si ordenado gerou em diversas famílias madeirenses? Nunca. Ao DIÁRIO, quando o Papa João Paulo II decretou tolerância zero a casos de pedofilia na Igreja, chegou mesmo a confessar o pecado do seu protegido, mas rapidamente recuou covardemente, preferindo manter a sua confortável posição inicial. No seu longo episcopado ocorreram outras situações de abuso. Alguma vez se debruçou sobre o assunto? Silêncio. Que religião professam estes altos dignatários? A da conversão, pilar do tempo quaresmal? A da partilha e do perdão? A hierarquia opta, sempre que pode, por acomodar-se, preferindo não exorcizar os seus demónios internos, que minam a credibilidade da instituição. A tal Igreja de janelas abertas, preconizada pelo Concílio Vaticano II tem muito trabalho por fazer, a começar pela mentalidade da maioria dos seus dirigentes. Depois vem a falta de vocações, os templos vazios, o distanciamento a uma instituição que prefere a evolução na continuidade ao arejamento litúrgico. A Igreja não pode ficar à margem nem fazer jogo duplo. Tem de ir para o terreno, ao encontro, ser parte activa da sociedade, de forma transparente. O lugar dos pedófilos e dos abusadores é na cadeia, não no altar. Que o silêncio que ecoou no Largo do Colégio na passada quarta-feira abale os alicerces de silêncio ensurdecedor que muitos teimam em seguir. São eles que têm de pedir perdão, não os outros.