Crónicas

Desnudemo-nos!

Mantenho a minha crença: o amor desperta e salva. É que só há bom humor quando há amor. Sem amor, o Carnaval, é um veículo blindado de tensões e segregação, de escárnio e maldizer. Sem amor, o humor não é humor.

De tretas! Como? Com bom humor! É ele que nos desnuda sem pudor, sem dó nem piedade, com uma inteligência que transpõe a vulnerabilidade, com o poder de transformar uma mensagem, de esvaziar um conteúdo aparentemente poderoso e invencível. É que o humor tem uma função social, psicológica e espiritual. Não será por acaso que os sábios sabem rir de si próprios?!

Sábado passado, estive na Avenida do Mar, a fazer diretos e reportagem para a TVI/CNN Portugal. Dei comigo invadida pelo espanto e pela curiosidade ao ver desfilar pessoas que se apresentam diariamente tão sérias, tão introvertidas, tão politicamente corretas nas suas modestas opiniões e aparições. Vi (também) a Avenida iluminar-se à passagem de trupes inclusivas, com pessoas que a sociedade insiste em hostilizar através do recurso cruel à exclusão disfarçada de inclusão (tema para outra crónica). Muitas pessoas desnudas, outras camufladas de plumas, brilhos, todas com sorrisos rasgados e acenos efusivos, Avenida fora. Sem parar. A espalhar e a contagiar alegria. E foi quando (re)lembrei o poder dos arquétipos. O ‘bobo da corte’, o ‘palhaço’, o ‘louco’, todos eles símbolos que correspondem a um arquétipo social que tem o poder de questionar tudo e todos. Reúnem uma função essencial nas comunidades. Na verdade, o humor, quando utilizado com inteligência e generosidade, revela o que ninguém ousa expressar, vira do avesso crenças e estereótipos inquestionáveis, traz a nu o que se esconde nos recônditos de cada alma, liberta-nos de levar a sério pensamentos que geram discussões corrompidas e estéreis, expõe a fragilidade e o ridículo dos argumentos pré concebidos, instalados no inconsciente coletivo, altera, definitivamente, a nossa geografia pessoal, a nossa perspetiva, porque suspende o juízo, atira por terra quem se põe em bicos de pés para ganhar a importância que não tem. O bom humor, eleva o nível de autoconsciência e só ela permite que saibamos o que estamos a sentir e por que o estamos a sentir. Até porque, a autoconsciência é o primeiro pilar da Inteligência Emocional.

Sábado, na Avenida, eu, mulher, que me achava bem-humorada, descobri - com o generoso auxílio consciente de quem vê realmente, o essencial de cada ser humano - zonas cinzentas a trabalhar em mim própria. E isto é sinónimo de que o humor que desfilou na Avenida vem de um lugar de amor e conexão! Desnudemo-nos (todos) mais vezes! De preconceitos e crenças limitadoras!

Mea culpa

Isto do Carnaval é mais sobre autoconsciência e crescimento do que folia. Parece-me que, afinal, é a altura do ano em que tantos manifestam quem realmente são e insistem mascarar ao longo do ano, com medo de não serem aceites, de não pertencerem. Ou seja, com recurso ao humor, ao bom humor, tiram as máscaras, brilham e iluminam!

Nesta equação somos (bem) apanhados na curva. Num determinado momento do desfile, apanhei-me a rir de algumas pessoas. Grave. É que rirmos com alguém é bonito, é saudável. Outra coisa, completamente diferente, é rirmos de alguém. Ainda que inconsciente, este é um comportamento que revela pretensão e superioridade. E desde esse lugar, o humor serve apenas para rebaixar o outro, para nos sentirmos (ilusoriamente) superiores. E foi assim que me comportei durante um período na Avenida. Com pensamentos e comentários partilhados com colegas e amigos presentes. E foi também assim, que me desconectei do amor e dos demais, que alimentei por instantes, preconceitos, estereótipos, discriminações e segregação. Foi assim que descobri que ainda vivem e gritam em mim – crenças - a trabalhar, sobretudo acerca do corpo feminino, da exposição social, da aculturação... Mea culpa. Eu que defendo que não é sobre perfeição, é sobre conexão, fui bem apanhadinha por uma porta que se escancarou no meu inconsciente. A todos os figurantes que tiveram a coragem e a ousadia de revelar e celebrar quem são, de levar a sua luz própria à Avenida: parabéns! Obrigada pelo exemplo!