A Guerra Mundo

Em Kiev a vida regressou sem timidez mas a guerra continua presente nas ruas

Fotos ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
Fotos ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Kiev recuperou parte da vida de outrora, mas é ainda uma cidade a dois ritmos, entre a sensação de normalidade que a população quer deixar transparecer e a recordação constante de que o pior pode estar por vir.

Svitlana Mahometa está sozinha no interior de um vagão-cama no comboio que partiu de Przemysl, na Polónia, em direção a Zaporíjia. Quase a totalidade das pessoas a bordo deste comboio, que arrancou já era noite cerrada, são mulheres e crianças - homens apenas os revisores e o maquinista.

Com 19 anos, está a dois anos de concluir a licenciatura em Turismo e Lazer na Universidade de Wroclaw, na Polónia, e decidiu voltar a casa, em Dnipro, para visitar os pais e a irmão, que não vê há mais de três meses. "Férias são para ir a casa", diz.

Estava na cidade quando a invasão começou, há praticamente um ano, e ainda tem bem presente na memória: "Tinha medo, nos primeiros meses não conseguia dormir, praticamente, mas hoje durmo sem qualquer problema, a vida continua."

E porque "a vida continua" regressa a Dnipro contra a vontade dos pais, mas "sem medo". "Duro já foi" o primeiro Natal sem a família e conseguir o carimbo no passaporte. "Antigamente tinha-o em 10 dias, desta vez esperei quase dois meses", conta à Lusa.

Para Svitlana, ou "Sveta" para os colegas de faculdade, "é necessário voltar à normalidade", por isso não vai pensar na guerra, ainda que a linha da frente esteja a pouco mais de 200 quilómetros e Dnipro seja uma das cidades que mais fustigadas foram nos últimos meses.

Lá na linha da frente estão os seus dois irmãos: um com 23 anos, o outro com 40. "Um dos meus irmãos ficou ferido e regressou a casa durante um tempo", revela, enquanto segura uma garrafa térmica laranja das Forças Armadas que o irmão lhe deu da última vez que estiveram juntos. Agora planeia devolvê-la, só não sabe quando.

A vida também continua na capital do país, Kiev, onde há praticamente um ano soavam as sirenes antiaéreas e as imagens em direto da Praça da Independência antecipavam o pior. Que não chegou.

Fortes explosões abalaram Kiev naquela madrugada de 24 de fevereiro, mas a cidade não caiu. E hoje quer reerguer-se. As sirenes antiaéreas continuam a ecoar pelas ruas, mas são recebidas com desprezo pela maioria da população.

A vida voltou às ruas da capital ucraniana. Restaurantes e cafés estão abertos e a abarrotar de pessoas, o trânsito é constante.

Só os sinais espalhados pela cidade conseguem revelar a realidade de um país que está a tentar repelir uma invasão. Por todo o lado há placards e 'outdoors' com mensagens alusivas às Forças Armadas e o azul e o amarelo da bandeira do país, pessoas que pedem contribuições para os militares, sacos de serapilheira, janelas reforçadas com fita-cola para impedir que os estilhaços se propaguem.

As sirenes voltam a tocar e são audíveis em toda a cidade, mas ninguém liga. A vida segue, já esteve interrompida demasiado tempo, e a sensação é de uma aparente segurança. Kiev goza hoje de uma relativa normalidade depois de um longo hiato e ninguém sabe quanto mais tempo vai durar.

Sem turistas na cidade e muito menos habitantes - que encontraram refúgio noutros países -, ficam 'a descoberto' os inúmeros militares que aproveitaram aquilo que em tempo de guerra se assemelha a folgas para visitar familiares. Por toda a parte há homens fardados, mas a gozar de uma descontração que não se coaduna com a rigidez de um conflito.

Passeiam pela cidade de mão dada as namoradas, as mulheres ou os filhos. A atravessar uma homenagem ao Batalhão Azov, que esteve rodeado por militares russos durante o cerco de Mariupol, em março do ano passado, um pai aponta para o enorme cartaz, para tentar captar a atenção do filho, que decidiu ignorar. Está mais entretido a fazer do braço do pai um baloiço e em aproveitar o tempo que têm.

Ninguém perde muito tempo em conversas, a manhã de sábado é movimento, mas quase todas as pessoas concordam: é credível a ameaça de uma grande ofensiva russa no início da primavera, assim como era credível para a população ucraniana o início da guerra há um ano.

"Ninguém sabe o que vai acontecer, mas todos sabemos que vai acontecer", conta à Lusa Gregory, com 35 anos, à conversa dentro de uma pizzaria onde não há lugar para mais uma pessoa.

O regresso da vida tem, contudo, horário definido. Continua a vigorar o recolher obrigatório às 23:00 e as luzes da cidade praticamente desaparecem, como se uma outra cidade surgisse quando a população recolhe.

Svitlana chega a Dnipro ao início da manhã e, conforme conta à Lusa por telemóvel, à semelhança dos compatriotas em Kiev, o dia é dedicado a visitar a irmã e a ir com os sobrinhos, de 10 e 06 anos, ao parque, para que esqueçam a guerra que a avó de "Sventa" desejava que nunca tivessem conhecido: "Era o maior desejo da minha avó, que tem agora 87 anos, por isso vou com eles ao parque, para que não estejam a ver as notícias, e tentem ter a minha infância."