Carnaval, ai, ai...
Do gira-discos dos vizinhos chegava o som do samba, ouviam-se apitos aqui e ali e, uma vez por outra, havia um que entrava, comia um pires de malassadas, agradecia com voz de falsete e seguia caminho
A vida lá por cima entrava em festa depois do almoço, quando as lojas fechavam na cidade e os primeiros mascarados desciam o beco ou apareciam a passear pelo caminho, mas para a minha mãe ainda era cedo para se por a adivinhar quem seriam. Em cima da mesa da cozinha acumulavam-se malassadas de vários formatos e em várias taças, enquanto despachava a massa crua com a habilidade de uma cozinheira. “E esta? Queres mais redonda ou assim com uns corninhos?”
Eu não era esquisita, comia as redondas e as outras, desde que houvesse bastante mel e havia sempre, dava a impressão que o garrafão de cinco litros nunca se esgotava. Havia de dar para o almoço, o lanche, o jantar e para nos alimentar na quarta-feira de cinzas. A minha mãe seguia a tradição à risca e, no primeiro dia da Quaresma, mandava a fé e a igreja que se fizesse jejum. O estranho era considerar jejum quando se passava um dia inteiro a comer malassadas duras.
Mas o assunto era daqueles que não valiam a discussão, era assim porque era e, sobretudo, porque a minha mãe fazia da penitência um dia de alívio na obrigação de cozinhar. O entrudo, na verdade, transformava aquela senhora de meia idade, sempre tão cautelosa, capaz de dar três voltas à casa de antes de sair só para garantir que estava tudo bem fechado e aferrolhado. No dia de Carnaval mandava-me abrir a porta do caminho, que podíamos ter visitas, talvez um mascarado que quisesse passar e lanchar.
E se fizesse um dia sol ainda enfeitava o quintal, o terraço e as laranjeiras com serpentinas para depois dizer-me que ficavam mesmo bonitas, as fitas de papel a tremer na brisa e com reflexos. Depois, mais à tardinha, ia ter comigo à varanda e metia-se a adivinhar quem seria aquele grupo de homens enfiados em vestidos de noiva e de mulheres em roupas de velhos, com barretes de orelhas e coletes de fatos antigos.
Do gira-discos dos vizinhos chegava o som do samba, ouviam-se apitos aqui e ali e, uma vez por outra, havia um que entrava, comia um pires de mal-assadas, agradecia com voz de falsete e seguia caminho. Em casa costumávamos ficar apenas nós, as mulheres. A minha mãe e eu, pois o meu irmão tinha agenda ou no grupo de campismo ou, depois, nos bailes dos hotéis. O meu pai gostava das festas em casa do senhor Osvaldo, que era amigo e morava no Lombo dos Aguiares.
Na vez que se vestiu de mulher, com os sapatos e o vestido que uma estrangeira dera à minha tia Conceição, desceu a entrada com o Carlos e fez sucesso, pelo menos ficou bem nas fotografias. Ou melhor, ficou estranho, mas no Carnaval era tudo mais ou menos estranho, era como se o sítio, os vizinhos e até a minha mãe, austera intransigente, se transfigurassem numa ópera ou num teatro grotesco, onde só passava samba e se comia malassadas com mel.
Mais tarde, quando o meu irmão e as miúdas da escola começaram a circular pelos hotéis, é que descobri que havia baile de máscaras, com disfarces bonitos. Nunca fui a um desses. Para mim, o Carnaval, o da infância, foi aquele lá por cima, com os meus vizinhos, com bailaricos de improviso, comigo na varanda a ver passar os mascarados. Na adolescência parecia-me pouco e pobre, hoje tenho saudades de almoçar malassadas duras na quarta-feira de cinzas.