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Vaticanistas consideram que Igreja portuguesa teve mais coragem que a italiana

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Vaticanistas ouvidos pela Lusa apontam à Igreja Católica portuguesa mais coragem do que outras Igrejas europeias, incluindo a italiana, na abordagem dos abusos sexuais, ao optar por pôr a investigação nas mãos de uma comissão independente laica.

"Estas 5.000 crianças abusadas identificadas pelo inquérito português são muito importantes, e do ponto de vista histórico valem muito mais do que as mil que surgiram no relatório da Pensilvânia em 70 anos, que trouxe este assunto de volta aos noticiários nos Estados Unidos", disse à Lusa o professor de Geopolítica do Vaticano Piero Schiavazzi, da Link Campus University de Roma.

Segundo Schiavazzi, o "grande número" de casos encontrados em Portugal demonstra "uma grande capacidade para rastrear esses abusos e que, portanto, a Igreja portuguesa tinha razão, apesar de muitas críticas terem sido feitas, ao escolher uma comissão independente".

O especialista no Vaticano considera um "grave erro" que na Itália a Igreja não tenha confiado a investigação dos abusos a uma comissão independente, sobretudo porque "como em Portugal, também em Itália não há um espírito anticlerical" que leve o clero a ver atrás de qualquer leigo "um possível inimigo da Igreja".

A investigação lançada pela Conferência Episcopal Italiana avalia apenas os últimos 20 anos e, sobretudo, foi coordenada pela Universidade Católica, que muitos observadores não encaram como independente.

"Na Itália, não há desejo de ir ao fundo do fenómeno. Investigar 70 anos de história significa compreender as falhas do sistema e criar políticas eficazes para o futuro", disse à Lusa Franca Giansoldati, vaticanista do jornal Il Messaggero.

A jornalista escreveu um livro-entrevista com o cardeal Gerhard Muller no qual o ex-prefeito da Congregação da Fé pediu maior transparência sobre os abusos e uma mudança de ritmo no Vaticano.

Segundo Giansoldati, o dossiê português "é uma mudança de sistema" na gestão dos abusos sexuais na Igreja.

"No passado, a política da Igreja era preservar o bom nome da instituição católica, da diocese, da Igreja à custa das vítimas. O sistema tendia a encobrir os casos, a não ouvir os necessitados de conforto, de ajuda, de vítimas e sobretudo tendia a não dar seguimento às punições. As poucas punições realizadas em 70 anos, talvez nos flagrantes casos de abuso e pedofilia, ocorreram sem transparência, no silêncio", adiantou Giansoldati.

A Lusa tentou contactar Matteo Bruni, o diretor da sala da Imprensa da Santa Sé, para obter um comentário sobre a questão portuguesa, mas este remeteu para a Conferência Episcopal Portuguesa.

Depois de assinalada a importância mundial deste dossiê, a assessoria de imprensa remeteu para o último documento do Vaticano sobre o tema da proteção de menores.

Esses documentos de referência "deixam as conferências episcopais livres para avaliar e agir de acordo com suas próprias sensibilidades".

Um dos elementos que faltam nesse documento é a obrigação de denunciar às autoridades criminais do país onde ocorreu o abuso.

"Sobre a obrigação de informar às autoridades civis, o nosso sistema legal não prevê isso na Itália, portanto os bispos italianos escondem-se atrás dessa regra. Deve ser moralmente obrigatório, sobretudo porque na Itália a justiça civil e penal funciona, enquanto a canónica não. Bispos e padres que souberem de abusos devem ir direitos a um magistrado e não o fazem", concluiu Giansoldati.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica recebeu 512 testemunhos validados relativos a 4.815 vítimas desde que iniciou funções em janeiro de 2022, anunciou o seu coordenador, Pedro Strecht, ao apresentar o relatório na segunda-feira.

Esta comissão enviou para o Ministério Público 25 casos de entre os 512 testemunhos validados recebidos ao longo do ano.