Aos 50 e muitos
Às vezes, sem perceber bem como, levantava-se uma discussão violenta e amuavam
As tardes da minha adolescência foram uma sequência de meses e anos de tédio, espaços de tempo em que pouco acontecia e nada se alterava. A minha mãe dividia a janela da sala com a minha tia Alice para bordar com a melhor luz e eu arrastava-me pela cozinha, com a espinhosa missão de lavar a loiça, varrer e limpar o chão. Quando a telefonia dava o sinal das quatro, a minha mãe dizia que era hora do café e, depois de me fazer de surda umas duas ou três vezes, lá aparecia com as chávenas de cevada Pensal a tremer em cima de um pires.
Aos 14 anos, certa de que todas as outras miúdas da escola dos Ilhéus tinham vidas muito mais interessantes, eu sentia-me presa à casa do Laranjal, àquelas tardes onde, de longe a longe, se ouvia um cão ladrar e o silêncio era interrompido pelo autocarro a travar na curva. Da sala chegava a som da conversa. A minha mãe e a minha tia Alice falavam de assuntos corriqueiros, das flores, da fazenda ou se já estava na altura de ir ao cabeleireiro fazer a permanente.
Às vezes, sem perceber bem como, levantava-se uma discussão violenta e amuavam. E, como eram orgulhosas e não gostavam de perdoar depressa a ofensa, usavam-me como meio de comunicação: “pergunta à tua mãe se quer que faça o caseado ou o francês primeiro” ou “vê se a tua tia já quer tomar o café”. E era estranho que, na verdade, continuavam no mesmo lugar, a um metro uma da outra e a partilhar a tesoura para cortar as linhas. Nessas alturas eu tinha a certeza que aquilo só me acontecia a mim.
As outras miúdas da escola estavam a treinar andebol ou natação, a beber chá e bolos num café ou a estudar num quarto com secretária, decorado a tons de cor de rosa, com esferográficas, borrachas e papel perfumado ou recortar revistas com os posters do George Michael. Eu estava ali, entre as crises de duas mulheres de meia idade, ocupada com a cozinha, a ler às escondidas os livros que me emprestavam. Ou sentada no varandim do terraço, a imaginar como ia ser a minha vida de aventuras depois de fazer 18 anos.
Daquelas tardes, a melhor parte era quando a minha mãe a minha tia ficavam com saudades do tempo em que eram novas. Se não fossem as fotografias a preto e branco, guardadas dentro de gavetas e envelopes, seria difícil imaginá-las novas. Eu, com aquela arrogância da juventude, não as conseguia ver de cabelo preto, sem rugas, frescas, em vestidos dos anos 40 e 50. Elas eram assim, de meia idade, seriam sempre assim. E depois contavam histórias de tardes de domingo a dançar ao som do gramafone na sala da casa do meu avô ou na dos vizinhos.
A minha tia lembrava-se do casamento, da festa, e a minha mãe falava de como era difícil dançar tango e o pasodoble. E voltava a ser esquisito pensar na minha mãe nesses salões de baile improvisados - com as cadeiras afastadas e a mesa encostada a um canto - a rir, a falhar o passo, a tentar de novo, com a música a rodar num disco e misturada com as vozes e as conversas. E falavam das vizinhas, vizinhos, das primas e primos, pessoas que eu, nos meus 14 anos, tinha dificuldade em perceber que tinha sido novos e magros. As mulheres sem grisalhos; os homens com cabelo.
Os amuos, as preocupações, aquele lado sombrio que traziam colado à pele como que desapareciam. Havia risadas, como se estivesse a tocar a música, ali, na nossa sala, era como uma porta aberta através da qual eu via as pessoas que tinham sido, mais alegres, mais felizes, cheias de uma esperança que só se tem aos 20 anos. E muito antes de o destino as colocar ali, a meio dos anos 80, como donas de casa, com família e casas para gerir. Os vizinhos nas suas rotinas, os primos emigrados, pai e mãe mortos e a vida como ela era aos 50 e muitos.