O melhor da Festa é preparar a Festa
Sem outros apoios além de mim e, às vezes, do meu irmão, o processo arrastava-se dias e dias
A Festa sequestrava a minha mãe, a pessoa preocupada, a mesma que carregava todos os nossos problemas – os do momento e os do futuro -, e entregava-nos uma senhora do mesmo tamanho, com a mesma cara e as mesmas roupas, mas muito mais divertida, ainda mais caótica e excêntrica. E todos os anos, durante um mês inteiro, vivíamos entre a alegria e a ira da dona Celina, mãe de dois filhos, mulher de um pedreiro, bordadeira de casa, a quarta de cinco irmãs e o poder mágico por detrás das nossas vidas.
Sem uma explicação razoável além de estarmos perto da Festa tudo o que havia dentro de casa e no interior dos armários, dos colchões e das almofadas mudava de lugar, era aberto e era possível ver os encaixes das gavetas, as tábuas das camas e o pó que se acumulara em cima do armário onde, invariavelmente, jaziam vários envelopes grandes com radiografias. A minha mãe já não sabia bem de que eram, mas depois de limpos voltavam ao sítio, “ainda podiam ser precisos”.
O papel de oferta com a fita-cola dos embrulhos fazia parte desse conjunto de coisas que ainda podiam ser precisas, mas esses bocados de papel com azevinhos, velas e pais natais esperavam um ano até servir de forro às gavetas. Quando se começava a forrar as gavetas era bom sinal, o fim da desordem estava perto. A questão era a minha mãe ser exigente e caótica.
E achar divertido ter a casa ao contrário, de fazer tudo o mesmo tempo e estar certa de que a Festa não era Festa se não cheirasse a lixívia, a limpa metais e a cera do soalho. Sem outros apoios além de mim e, às vezes, do meu irmão o processo arrastava-se dias e dias até a irritar, que só ela tinha calhado uma filha que, para mais, era como era, sem qualquer jeito para a vida de casa. “Só a mim, só nesta casa”, dizia aí a 18 de Dezembro, quando acabavam as aulas e eu queria dormir até às 10.
Tão depressa se enervava como logo a seguir vinha mostrar o trigo, que estava a crescer. Ou como, num ano, desceu ao ribeiro e trouxe de lá um pinheiro de verdade, bonito e redondo, um que ficara esquecido por alguém. Foi um ano em que houve árvore mais cedo, em que a nossa gambiarra começou a piscar atrás da cortina da sala mais ou menos ao mesmo tempo que a dos vizinhos.
A minha mãe enfeitou-a com o que tinha, bolas, sinos, a gambiarra às cores e neve em spray e anunciou que assim é que era. A festa podia ter neve a fingir, mas tinha cheiro a pinheiro. “Não percebes? Não sentes? Não vês como é bom e bonito?”. Eu queria um pinheiro dos filmes numa casa dos filmes e não tinha idade para perceber que aquela senhora pequenina, tão normal e semelhante a todas as outras senhoras da mesma idade, tentava explicar-me que o melhor da Festa não tinha dimensão física, era uma ideia e todas as memórias que guardava desde menina.
A desordem, mesmo nesse ano do pinheiro resgatado de dentro do ribeiro, prosseguiu no resto da casa porque a Festa era aquilo, aquele tempo a preparar, a limpar, a pintar paredes, a fazer bolos e a ter por recompensa esse cheiro feito de tudo: do aroma de bolos cozidos, do ananás e das tangerinas na fruteira do quarto de jantar, da cera no soalho, dos junquilhos nas jarras e até aquele gesto de colar a cabeça do Menino Jesus do presépio. A minha mãe sabia que o melhor da Festa era preparar a Festa.