Boas Festas
O presépio ainda não estava feito. O Menino Jesus, o São José e a Nossa Senhora esperavam dentro da caixa de sapatos por uma folga na agenda apertada da minha mãe
24 de Dezembro. O dia mais caótico do ano na casa do Laranjal começava cedo, com a minha mãe a passar-me para a mão a vassoura e a dizer que era para ficar tudo bem varrido, mesmo atrás dos vasos. E desaparecia casa adentro para combater a desordem em que se vivia desde o início do Dezembro. A ‘véspera de Festa’ era também o dia em que tudo o que podia correr mal corria, de facto, mal.
O presépio ainda não estava feito. O Menino Jesus, o São José e a Nossa Senhora esperavam dentro da caixa de sapatos por uma folga na agenda apertada da minha mãe. E, embora fosse quase Natal, não havia árvore, nem arranjos, nem sequer uma jarra com junquilhos e sapatinhos. A minha mãe não tinha tido tempo e não delegava funções a não ser as que não gostava como varrer o quintal, os degraus da entrada e os carreiros todos que iam dar ao galinheiro e à fazenda.
O melhor da Festa era dela ou dependia das suas ordens e por isso o meu pai aguardava que se decidisse se queria um ramo de ameixeira ou um ramo de pinheiro. E a minha mãe hesitava, que o pinheiro tinha cheiro, mas o último tinha vindo tão torto que fora preciso amarrá-lo à parede. E sem decidir o que fosse, limpava a última porta e metia na pia da cozinha os copos e o abajur do corredor.
Pelas cinco da tarde, depois de ter dado várias ordens, muitas contraditórias, lá se instalava o “galho de ameixeira” no canto da sala e o presépio mesmo ao lado, mas todos os anos o que vinha de dentro das caixas trazia surpresas. A vaca perdera a cabeça e a minha mãe não sabia onde tinha guardado a cola, mas um presépio sem vaca não tinha graça e por isso ia na mesma, a fazer conjunto com as ovelhas a quem faltavam bocadinhos.
E como nunca havia tempo ou dinheiro, os enfeites da árvore acusavam o uso, mas todos cumpriam a missão, com a parte boa à vista. Havia sinos, bolas, sempre das mais pequenas por causa do preço e uma gambiarra às cores que, invariavelmente, deixava de piscar. “É da lâmpada mestra”, dizia a minha mãe. As gambiarras dos anos 80 tinham uma luz mestra que fazia piscar, a nossa estragava-se com muita frequência.
Tudo, naquela casa, parecia funcionar de modo próprio e de maneira diferente do que se via nos filmes e nas casas do vizinhos e dos primos, onde tudo parecia encaixar-se suavemente. O presépio, a escadinha e a cera no chão, a Festa fazia-se sem dor e sem brigas, mas isso era com os outros. Nós discutíamos muito, havia amuos e choros, quase todos de curta duração, que a minha mãe tinha que bater claras para os bolos e havia um galo para tirar as penas e cozer.
Pelas nove da noite, quando parecia que, por milagre, íamos ter um Natal como as outras pessoas, o quadro eléctrico ia abaixo, que a corrente não aguentava os fachos e as luzes da cidade. E todos os anos a minha mãe pragueja a Casa da Luz, que não tinha consideração pelas pessoas como ela, mães de família atarefadas com loiça para lavar, uma canja ao lume e uma filha imprestável, um marido que ajudava pouco e um estroina de um filho que rebentava bombas no quintal.
E nós éramos de facto isso tudo, pessoas cheias de defeitos, caóticas, dadas a argumentar e a discutir, a querer ganhar as discussões, mas isso era apenas uma parte da nossa história como família. A outra era gostarmos muito uns dos outros e esse é o segredo que as paredes da casa do Laranjal guardam.
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