Assembleia da Madeira pode bloquear aplicação de uma lei de identidade de género como pretende o Chega?
“O CHEGA quer bloquear a aplicação, na Madeira, da medida que prevê a criação de casas de banho e balneários mistos nas escolas. Para esse efeito, já deu entrada, na Assembleia Legislativa da Madeira, de uma proposta de Decreto Legislativo Regional que indica que a determinação da lei nacional não se aplica nas escolas da Região.” Este é o início de um comunicado de imprensa do CH/Madeira que visa travar a aplicação, na Região, da lei que foi aprovada, na Assembleia da República, no passado dia 15 de Dezembro.
Uma lei que resulta da conjugação de três propostas – PS, PAN e BE – e que foi aprovada com votos favoráveis do PS, BE, PAN e Livre, votos contra de PSD, CH e IL e abstenção do grupo parlamentar do PCP.
O projecto de lei do PAN altera a lei nº38/2018 que estabelece o ‘Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à protecção das características sexuais de cada pessoa e à aprovação a respectiva regulamentação”.
O PS tinha uma proposta com um título mais simples: “Estabelece o quadro para a emissão das medidas administrativas que as escolas devem adoptar para efeitos da implementação da Lei Nº 38/2018”.
Finalmente, o Bloco de Esquerda tinha um projecto de lei para “Reforço da garantia de exercício do direito à autodeterminação da identidade de género, da expressão de género e do direito à protecção das características sexuais no âmbito escolar”.
Na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, foi decidido elaborar um único projecto de lei que tem um título semelhante ao do PS, mas que integra medidas das outras duas iniciativas legislativas.
A apresentação destas propostas – deram entrada no parlamento nacional em 2022 - resultou do facto de, a 29 de Junho de 2021, o Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade de algumas normas da lei nº38/2018, por considerar que a iniciativa legislativa teria de ser da Assembleia da República, por ser sua competência exclusiva legislar sobre direitos, liberdades e garantias e não do Governo da República.
A lei que foi aprovada na passada sexta-feira (15 de Dezembro) e que motiva a reacção do CH/Madeira, pretende garantir a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e a protecção das características de cada pessoa, nomeadamente em ambiente escolar.
Além de prever questões concretas sobre adequação das escolas a esta realidade, a lei determina a realização de acções de informação sobre os direitos das pessoas LGBTI+ dirigidas a alunos, professores, outros trabalhadores e à comunidade educativa.
As escolas devem criar meios de detecção de situações que possam colocar em causa estes direitos dos seus alunos, bem como outras situações de assédio e discriminação.
Nas questões mais práticas, os estabelecimentos de ensino deverão estabelecer procedimentos para mudança dos documentos administrativos e toda a documentação de “exposição pública” – fichas de avaliação, registos e outros - para o “nome ou género autoatribuído” que poderá ser diferente do que consta do cartão de cidadão do aluno, bem como o género que poderá ser diferente daquele que lhe foi atribuído às nascença-
Num dos pontos da lei fica bem claro que todos estes procedimentos devem ocorrer respeitando “a vontade expressa dos pais, encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem”.
As escolas também deverão “promover a construção” de ambientes para as diversas actividades que tenham em conta o “género autoatribuído”, garantindo que “as crianças e jovens possam optar por aqueles que com que sentem maior identificação”.
Do mesmo modo, nas escolas onde é obrigatório vestir um uniforme, ou qualquer outra indumentária diferenciadora de sexo, os alunos poderão escolher aqueles que estão de acordo com a opção com que se identificam.
Uma das questões mais polémicas está no ponto 3 do artigo 5º da lei: “As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos e tendo e tendo presente a sua vontade expressa, aceda às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo-se às adaptações que se considere necessárias”,
Ou seja, em parte alguma do articulado são referidas ‘casas de banho mistas’, prevendo-se a necessidade de defender os direitos de todos os alunos.
Constituição da República é clara
A pretensão do CH de travar a lei nacional, através de uma decreto legislativo regional, parece chocar com a Constituição da República.
Desde logo com o artigo 13º (Princípio da igualdade) que determina:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.
Ou seja, nenhum aluno de estabelecimento de ensino da Madeira pode ter menos direitos do que outros em qualquer parte do País.
Por outro lado, a própria Assembleia Legislativa da Madeira poderá ser “incompetente” para legislar sobre estas matérias.
Entre as matérias que fazem parte do “domínio reservado de competência da Assembleia da República” estão os “direitos, liberdades e garantias”, pelo que nunca poderá ser um decreto legislativo regional a determinar a aplicação, ou não, de uma lei desta natureza.
CH deve alterar proposta
Segundo foi possível saber, a própria presidência da Assembleia Legislativa teria muita dificuldade em aceitar o diploma do CH – ainda não deu entrada no parlamento – por colidir com as próprias competências da ALRAM.
O CH deverá transformar a proposta de decreto legislativo regional numa proposta de lei à Assembleia da República que, se for aprovada no parlamento madeirense, seguirá para São Bento e será uma alteração à lei aprovada sexta-feira. Mesmo neste caso é muito discutível que a Assembleia da República possa aceitar discutir uma proposta que pretende alterar direitos, liberdades e garantias individuais.
Antes disso, a lei nacional ainda poderá passar pelo Tribunal Constitucional.