Pessoas sem-abrigo são "problema estrutural" da sociedade
As pessoas em situação de sem-abrigo têm de ser encaradas como "um problema estrutural", defende o diretor executivo da associação Crescer, que promove, hoje e quinta-feira, em Lisboa, um congresso sobre o tema.
Em entrevista à agência Lusa, junto à sede da Crescer, no bairro da Quinta do Cabrinha, em Lisboa, Américo Nave realça que a atual crise na habitação é um problema para toda a sociedade, da qual as pessoas em situação de sem-abrigo fazem parte.
"Parece que agora que há uma crise na habitação [se pensa] 'como é que vamos ajudar as pessoas em situação de sem-abrigo', como se fossem outras pessoas, como se fossem pessoas de outros planetas e não fossem cidadãos como outros quaisquer", critica.
"Até tentamos já que os nossos filhos não olhem para as pessoas que estão em situação de sem-abrigo, que não vejam as pessoas que estão em situação de sem-abrigo, como se não fossem cidadãos como todos nós", lamenta.
Ora, o que a atual crise na habitação veio provar é que "todos nós estamos numa situação de muita vulnerabilidade e a linha que separa estarmos ou não estarmos em situação de sem-abrigo é muito mais vulnerável" do que pensamos.
Claro que devia ser dada prioridade a quem não tem habitação, defende Américo Nave, arriscando dizer que, se o foco "há 30 anos" tivesse sido dar uma habitação às pessoas em situação de sem-abrigo, "não estaríamos a passar a crise da habitação que estamos hoje a viver".
Há dez anos que a Crescer arrancou com um projeto que segue o modelo internacional Housing First, que assenta na premissa de dar primeiro uma casa às pessoas que estão em situação de sem-abrigo e só depois tratar de todas as outras necessidades.
Neste período, o projeto Lisboa Housing First, que contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa desde o início, passou de sete para 140 casas na capital e recebe hoje financiamento da Segurança Social.
"Ao longo destes dez anos, nunca encontrámos ninguém que não aceitasse sair da rua e que não aceitasse uma casa. E 90% das pessoas que integraram o projeto não voltaram à situação de sem-abrigo", relata Américo Nave.
O sucesso do projeto fá-lo acreditar que é possível que possamos viver em cidades onde não existam pessoas em situação sem-abrigo.
"No século XXI, há pessoas a viajar ao espaço e há pessoas a viver na rua, isso não faz sentido", considera, reconhecendo que "cada vez há mais pessoas em situação de sem-abrigo".
Como a Crescer, várias outras organizações têm desenvolvido este modelo, quer em Lisboa, quer noutras cidades do país.
As casas que são propostas estão "dispersas pela cidade", contornando o estigma do sem-abrigo, o que "aumenta muito a inclusão destas pessoas na comunidade", destaca Américo Nave.
O diretor executivo da Crescer defendeu que ainda é preciso aumentar este tipo de resposta e reivindicou uma avaliação das respostas que têm sido dadas, para "perceber quais são os projetos que funcionam, os que realmente têm impacto na vida das pessoas e os que não têm".
Além disso, considera que é necessária "uma estratégia clara" sobre a importância de reconhecer a essas pessoas "o direito à habitação e que vivam numa situação de privacidade, onde possam elas próprias fazer as suas regras".
Organizado pelo projeto Lisboa Housing First, gerido pela associação Crescer, o "É um congresso" vai juntar 50 oradores de vários países, hoje e quinta-feira, na Nova School of Business and Economics, em Carcavelos, no concelho de Cascais.
O objetivo do congresso é mostrar os resultados de uma década de trabalho, reunindo especialistas e pessoas que estiveram em situação de sem-abrigo.