Há mais vida para além dos números
Não podemos ter um sistema baseado em esquemas assistencialistas, por um lado, e esbulho fiscal, por outro
Fátima tem 41 anos, a escolaridade obrigatória e trabalha desde os 16 anos, sempre para o mesmo patrão, numa pequena empresa da área da restauração. É casada e tem dois filhos. Apesar da já longa carreira contributiva tem de sobreviver com uns míseros 690 euros por mês. O marido, trabalhador não qualificado, pouco mais aufere. Casada há mais de 20 anos não vê futuro numa relação violenta, que é abusiva sobretudo a nível psicológico. A separação era o caminho natural para uma vivência esgotada e infeliz, mas nenhum consegue concretizá-la porque não há dinheiro para suportarem vidas separadas. O empréstimo da casa duplicou e, mesmo com as ajudas públicas existentes, o fim do mês acontece sempre nos primeiros dias após o recebimento do ordenado. Fátima já auferiu de um salário melhor, mas a pandemia gerou-lhe um corte significativo nunca mais recuperado.
Sabe que a sua situação laboral é injusta porque o negócio voltou a render como dantes, sabe que é explorada por um patrão sem qualquer tipo de preocupação social, mas apesar de todas as tentativas não consegue um novo trabalho no ramo a que se dedica desde sempre. É pontual, cumpridora e estimada pelos clientes, mas o seu esforço não é reconhecido nem os seus sonhos concretizados. Não consegue comprar roupas novas aos filhos, muito menos passar uma semana de férias fora da sua localidade. Jantar fora é um luxo raramente concretizado. O dinheiro é contado ao pormenor e poupança é uma palavra fora do léxico familiar. A infelicidade e muitas vezes o desespero marcam a sua vida, cada vez mais pesada e cada vez menos prazerosa. Já desistiu de ter esperança num futuro melhor. Está resignada e só espera que não lhe falte a saúde.
Este relato onde apenas o nome não é o verdadeiro é verídico e traduz também o quotidiano de milhares de ‘Fátimas’ que trabalham, mas que vivem na pobreza e que precisam de ajuda para satisfazer o mínimo das necessidades. Um trabalho e um ordenado já não são sinónimo de vida digna nem satisfatória. Que País se permite ter trabalhadores com anos de experiência a ganhar a remuneração mínima garantida? Que mensagem se transmite permitindo que este tipo de situações ocorra contra todas as regras e contra o essencial bom senso?
Margarida Tengarrinha, conhecida antifascista, escritora, ex-deputada e militante comunista, recentemente falecida, disse um dia: “Enquanto houver exploradores e explorados tem de haver revolução”. Continua a ter plena actualidade. Um País e uma Autonomia que se prezem não podem permitir a permanência destes quadros sociais. Que futuro pode projectar Fátima para os seus filhos?
É óbvio que para si as questões que vão dominando a agenda mediática estão em terceiro plano. Não tem opinião sobre o teleférico do Curral das Freiras e pouco se importa se o PAN apoia o Governo Regional. Diz que isso não lhe melhora em nada a vida difícil que leva. Não votou nas últimas eleições porque já não acredita nos políticos.
O que Fátima não sabe é que as receitas fiscais arrecadadas pelo Governo Regional aumentaram 18,6% nos primeiros 9 meses do ano, face ao período homólogo. Foram cerca de 802 milhões de euros, um recorde nunca alcançado, com uma verba superior ao registado na República e nos Açores. O bom desempenho da máquina fiscal deveria fazer-se sentir na melhoria das condições de vida da população, vertida não apenas em ajudas sociais, mas também no motor do desenvolvimento. Não podemos ter um sistema baseado em esquemas assistencialistas, por um lado, e esbulho fiscal, por outro. A carga de impostos sobre as empresas, os trabalhadores e o consumo está a esmagar as classes média e baixa. Veremos que resposta dará o Governo Regional no próximo Orçamento, sendo certo que as pessoas deveriam ser sempre mais importantes do que os números e de que os cofres cheios. Há vida para além destes.