O infortúnio de Júlio Dinis
Ainda recordo com entusiasmo o momento em que entrei pela primeira vez na Universidade do Porto para fazer a minha licenciatura em Medicina. Já lá vão mais de trinta anos. Subíamos uma dúzia de degraus na escadaria, isto sob o olhar atento da estátua do médico Júlio Dinis, situada no largo em frente, o mesmo autor do livro “As Pupilas do Senhor Reitor” e do romance campesino. Ele viu sempre o mundo pelo prisma da fraternidade, do optimismo, dos sentimentos sadios do amor e da esperança. Os mesmos sentimentos que prevaleciam na “Escola” médica nos formou, moldando muito da nossa práxis profissional.
Vivíamos nessa altura o pico do “Numerus Clausus”, no qual só entravam nas faculdades de Medicina portuguesa cerca de 10% dos estudantes que entram atualmente. Éramos muito poucos, conhecíamos a todos, e os nossos professores conheciam-nos a todos.
O mote era a dedicação, o voluntariado constante, um profundo orgulho no que fazíamos e tudo o resto nas nossas vidas era um pouco secundário à aprendizagem e ao exercício da profissão. O que alguns diriam, uma espécie de sacerdócio.
Hoje, muito se tem dito e escrito sobre o conflito latente na saúde entre médicos e a tutela do SNS. São tempos muito diferentes. O pensamento reinante na classe médica foi evoluindo, agora é diferente do passado. Os jovens médicos têm uma postura diferente dos jovens médicos do passado. Nem melhor, nem pior, simplesmente diferente, diria.
Um colega meu, Sérgio Barroso, e um amigo também médico, Álvaro Beleza, descreveram-no recentemente num programa televisivo como um “conflito geracional”. O que era aceitável na classe médica, parece já não o ser. O que era prioritário, já não o é. Acrescentaram que o “excesso de trabalho não pode mais ser justificado com uma necessidade ética”. E, “as horas de trabalho a mais aumentam muito o risco de erro médico e os médicos mais jovens não se querem sujeitar a essas condições de trabalho”. Nem pagar o equivalente a um salário mínimo, em seguros médicos anuais.
Álvaro Beleza acrescenta, “a Medicina é uma vocação para a vida, e para pessoas que estão disponíveis”, mas certamente hoje, não para fazerem tudo a qualquer preço e a qualquer risco. Assim pensam, creio, muitos dos meus jovens colegas.
Penso que a equipa de Manuel Pizarro, e talvez o próprio António Costa, e outros líderes da oposição, não perceberam é que os médicos querem viver com um salário adequado, mesmo que inferior ao de outras profissões de iguais qualificações, mas não querem mais a exaustão que longas horas extraordinárias nas urgências e nos blocos operatórios implicam para eles.
O que os médicos querem, acaba por no final não ser mais despesa pública, mas sim uma mudança de paradigma na saúde. Menos oferta de cuidados nas urgências em troca de mais cuidados e facilidade de acesso em atendimento de rotina e produtividade cirúrgica. Mas isso, como geralmente não é nem explicado, nem entendido pela generalidade da população, acaba por soar mal aos olhos e ouvidos dos políticos mais eleitoralistas. Daí não ter havido acordo.
O que acontece agora? Como em qualquer conflito, cada parte usa os argumentos que têm. Muitos médicos exaustos vão usar as prerrogativas legais da Lei da função pública que limitam o número máximo de horas extraordinárias que todos os funcionários são obrigados a fazer, ou mesmo os mais idosos a isentar das mesmas. Aqueles médicos com filhos mais novos usarão as mesmas prerrogativas que têm todos os restantes trabalhadores. O SNS ficará mais instável, os atendimentos em certas geografias mais incertos, e diria, uma dor de cabeça para quem gere os recursos humanos na saúde e para quem dela necessita.
Na Madeira, a contestação foi mitigada por um conjunto de acordos assinados entre e tutela e os sindicatos, que permitiram reduzir o número de horas extraordinárias semanais obrigatórias, fixar um subsídio de fixação de médicos na Região e atenuar os efeitos nefastos do conflito latente no SNS.
Júlio Dinis veio à Madeira procurar a cura para a sua tuberculose grave. Infelizmente tal não aconteceu, e o jovem médico acabou por morrer dessa doença aos 31 anos. Em vez disso, espero que este exemplo da Madeira seja o mote para o futuro governo da República, e as partes negociais nacionais, chegarem a um acordo duradouro que traga sentido estratégico, e paz na saúde, com mais facilidade de acesso a cuidados assistenciais.