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Da Cidade Eterna à verdade eterna

Decorreu na semana passada a 45.ª Conferência da Associação Europeia de Professores de Piano (EPTA), num ambiente fantástico que é a cidade de Roma. O lugar da conferência foi também um sítio histórico – o claustro da igreja de S. João Batista dos Genoveses, cuja construção inicial remonta ao séc. XV. Mais de 25 palestras/recitais proferidas pelos participantes de 24 países encheram os três dias da conferência dedicada em primeiro lugar à importância da música instrumental e operática italiana para o mundo. No entanto, as apresentações abrangeram as temáticas mais variadas – desde as descobertas de compositores menos explorados até às aplicações de multimédia na música clássica e música vanguardista. Assistiram a essas apresentações, além dos participantes, também muitos ouvintes (entre os quais um grupo de cerca de 15 professores de Hong Kong).

Tive a grande satisfação de contribuir para os trabalhos da conferência com uma homenagem à minha primeira professora de piano, Ivana Lang. É normal que o primeiro professor dum instrumento ocupe um lugar muito privilegiado e recordado na memória dum aluno. E também é normal que estes primeiros ensinamentos determinem em grande parte o caminho da evolução duma pessoa, seja o de um músico profissional ou não. Por isso, o que a minha professora me deixou é a coisa mais valiosa que se pode receber dum primeiro professor de música: o amor incondicional pela música.

Na altura, sendo uma criança, não tinha referências nem perspetiva histórica para entender que ela efetivamente era praticamente a única mulher compositora da sua altura (desde os anos após a Guerra até 1981, sensivelmente) na Croácia. Compunha bastante, e várias das suas obras para piano foram dedicadas a mim. Esta conferência foi uma excelente oportunidade para demonstrar a qualidade da sua escrita, insuficientemente apreciada oficialmente na altura. Foi uma oportunidade para compensar e retificar um pouco esta injustiça, mas também para lhe agradecer, tocando também as obras a mim dedicadas, pelo tal “algo” que não tem o preço. É esse “algo” que é capaz de nos sustentar e não deixar-nos render perante os percalços no caminho da aprendizagem, perante cansaço, perante dúvidas, crises pessoais, desapontamentos…enfim, perante tudo aquilo que faz parte do crescimento pessoal e profissional, de igual modo (ou até mais) que os êxitos, validações e afirmações.

A maior “prenda” que posso imaginar que um professor - neste caso concreto, de música, mas é bem extensível a qualquer processo didático – possa dar a um aluno seu é esse amor, esse “algo” que o vai sustentar e alicerçar ao longo do seu percurso árduo.

Não tenho dúvidas de que hoje em dia muitos professores têm a capacidade e a vontade de transmitir esse amor aos seus alunos. Mas, para isso, é necessário também que o recipiente esteja aberto para o receber. E é aqui que tenho mais dúvidas, pois os nossos jovens estão de tal maneira assaltados pela tecnologia, redes sociais e contactos superficiais e impessoais, que cada vez menos conseguem a paz, a calma e a capacidade de se ouvirem no seu interior, para receber essa comunicação que acontece a um nível ao qual já não estão bem habituados a sentir e interiorizar. Estariam a perder muito não se abrindo a essa comunicação.

E cada vez menos conseguem contextualizar aquilo que estão a aprender: no caso concreto da música, ela só se pode entender na sua totalidade quando se entendem as outras artes, as influências cruzadas, as interdependências, a sua natureza simbiótica e holística, em cada período, entre todos os períodos, entre todas as histórias da história e das histórias…enfim, quando se contempla a vida em si. Pois, julgo impossível tocar/ouvir/viver música que não referencie a vida, porque a vida é a inspiração inesgotável para a música e o amor é a inspiração inesgotável para a vida.