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Crónicas

E a festa quase a chegar

Havia sempre um presépio e um ramo de ameixeira como árvore, toda enfeitada com a gambiarra, as bolas, sinos e tudo o que havia dentro das caixas de sapatos

Quando o autocarro das sete e meia parava antes da curva para me deixar sair já a luz da cozinha estava ligada e a minha mãe praguejava por causa da hora de Inverno. Lembro-me de subir os degraus da entrada com cheiro a maçã cozida e batatas assadas e sentir o calor que chegava de casa, o calor do fogão e do forno e da minha mãe, enervada com o tempo que lhe fugia sempre, todos os dias.

Do ribeiro subia uma aragem fresca e húmida, estava a chegar o frio do Natal e faltava pouco para tudo ficar virado ao contrário e para a minha mãe perder a paciência connosco, com o Pepe e o Canelas, com as galinhas, com o mundo inteiro e até com Deus. A minha mãe virada do avesso ultrapassava o metro e meio de altura e os 52 quilos de peso, ganhava tamanho e dava medo.

E mesmo assim não havia pessoa que gostasse tanto da Festa como ela, que fizesse tudo como era da tradição, que arranjasse tempo para ir às compras, nesses dias curtos e escuros, a correr de uma loja para outra, com os sacos dos bordados, os embrulhos com panos de cozinha e toalhas turcas e loiça, mais o que fosse que lhe fizesse falta. E entrava assim pelas lojas de roupa e sapatarias, experimentava 20 pares e depois, com um sorriso, dizia que não, que ia dar mais uma volta.

Eu carregava os embrulhos e os sacos, ficava à porta a vigiá-los e morria de vergonha com aquela mania de regatear os preços, de perguntar se era algodão e se os sapatos eram ou não de cabedal. O dia das compras ia chegar tão certo como os pontos da escola antes das férias, como aquela mania de limpar tudo. Por cima dos móveis, as tábuas das camas e dentro dos armários, tudo feito ao mesmo tempo e numa desordem estranha.

A meio, algures entre as compras e as limpezas, a minha mãe e o meu pai iriam gritar e discutir um com outro por causa de um detalhe como pintar o papel para a rocha do presépio ou pintar a cozinha ou por outro assunto qualquer. O que dava sempre em amuos que, de uma certa maneira, deixavam o nosso Natal em suspenso. Haveria pinheiro, presépio e seriam capazes de se sentar à mesa para o almoço do dia 25?

A questão é que, todos os anos, os móveis voltavam ao lugar e a loiça regressava aos armários com a mesma naturalidade com que os meus pais faziam as pazes. Havia sempre um presépio e um ramo de ameixeira como árvore, toda enfeitada com a gambiarra, as bolas, sinos e tudo o que havia dentro das caixas de sapatos. E, de uma certa maneira, saber isso era bom, ajudava a aguentar as fúrias da minha mãe, os amuos do meu pai, mas o melhor era vê-la feliz.

E como ela ia feliz de loja em loja, com sacos e embrulhos, como subia o beco para ir às missas do parto, como fazia bolos e espalhava farinha pela cozinha e pelo cabelo e sorria a dizer que não havia nada assim, que fosse tão bom como a festa. Essa imagem é tão boa, tão calorosa como subir a entrada depois da escola e de um teste que não tinha corrido bem e sentir o cheiro a batatas assadas e maçã cozida.