Justiça cega
Os ciclos políticos são determinados pela expressão da vontade dos eleitores nas urnas, ou, excecionalmente, por decisões do Presidente da República (PR). Quando um simples parágrafo de um comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) faz cair um governo, fica subvertida a ordem democrática porque, passa a ser o poder judicial - mesmo que indiretamente - a determinar o processo político, com violação do princípio da separação de poderes.
Diz-se que a justiça é cega, no sentido de que ninguém está acima da lei. Mas a justiça não pode ser tão cega que, para realizar os seus fins, tenha de prejudicar o interesse público. A justiça tem de ser ponderada e não pode colocar os seus valores particulares acima dos valores globais da sociedade. Se assim for, a justiça estará apenas ao serviço de si mesma e não da sociedade.
O que se assistiu, neste 7 de Novembro de 2023, é algo que merece reflexão: como é que uma simples alusão a uma eventual abertura de um processo contra o Primeiro-Ministro (PM), num obscuro parágrafo de um comunicado da PGR, pode fazer cair um governo?
Considerando que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é o foro competente para abrir processos ao PM, parece-me lógico que o parágrafo de alusão a António Costa simplesmente está a mais no comunicado da PGR. Salvo melhor opinião, essa alusão ficaria melhor em eventual comunicado futuro do STJ, dado que é esta a entidade com competência para o efeito.
Mas o mais chocante desta situação é que se provocou a queda imediata de um governo, com grave prejuízo para a sociedade, sem se ter provado que o Primeiro-Ministro cometeu algum ilícito. De certa forma, o Ministério Público (MP) inverteu a sequência dos tempos normais da justiça: primeiro provocou danos irreparáveis a António Costa e ao país; só depois vai investigar se há algum fundamento para tal. Mesmo que António Costa venha a ser considerado inocente, para todos os efeitos práticos, já está a pagar o preço como se tivesse sido condenado. Qualquer pessoa de boa fé sente que há aqui uma injustiça gritante.
É curioso como, ao longo da maratona mediática do dia 7 de Novembro, os comentadores não se lembraram de destacar que António Costa não merecia a desconsideração de ter sido afastado da via política por um Último parágrafo de um comunicado da PGR.
Claro que a luta contra a corrupção é importante, doa a quem doer. No entanto, o MP tem mostrado falta de prudência na condução de alguns casos. Não só porque tem exagerado no mandar prender para depois investigar, como tem sido demasiado criativo na valorização dos indícios de corrupção. Recorde-se o caso de Sócrates em que o MP conseguiu ver indícios de corrupção que o o juiz Ivo Rosa não considerou como tal.
O último parágrafo do comunicado da PGR será o mais caro de sempre: custou a queda de um governo e, indiretamente, milhões de euros que os contribuintes vão ter de pagar.
Manuel Pereira