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Crónicas

A pressa

Temos pressa e, quando nos sobra tempo, preenchemos com hobbies que, em menos de nada, são um trabalho, uma canseira, mais uma obrigação. E voltámos à roda gigante

Há uma névoa castanha lá longe, na linha do horizonte, a anunciar calor e já estão homens encavalitados em cima de postes por causa das luzes da Festa. A vida agora é assim mesmo, acelerada, com pessoas sempre cheias de pressa para fazer qualquer coisa: ir almoçar, ir trabalhar, voltar a casa e fazer tudo de novo no dia seguinte e em modo rápido.

Temos pressa e, quando nos sobra tempo, preenchemos com hobbies que, em menos de nada, são um trabalho, uma canseira, mais uma obrigação. E voltámos à roda gigante. Eu, pelo menos, sinto-me muitas vezes assim, nessa tal roda, a andar e andar, sem conseguir aquele momento de paz que, na minha adolescência, me parecia um desperdício.

Dependurar-me no varandim do terraço a ver passar os autocarros ao fim da tarde era esse momento. Os travões guinchavam na paragem e, pouco depois, largavam os passageiros, pessoas dali e mais acima, onde o caminho não dava para passar um carro. E desciam as mulheres das casas de bordados e do armazém da banana com o almoço dentro de um saco, os estudantes com os cadernos debaixo do braço e homens de vários ofícios.

Os autocarros carregavam um mundo de gente, de muitas origens, mas sobretudo as classes trabalhadoras que viviam por ali, em casas térreas, com duas portas e duas janelas e um quarto de laje sem telhado - construído às escondidas da câmara num fim de semana - para incluir a sala da televisão e uma casa de banho com banheira.

E era melhor do que tinha sido antes, quando a retrete ficava numa casinha de madeira e se tomava banho numa tina grande de metal. As pessoas regressavam felizes a uma casa que lhes parecia a palácio e com mais um dia de trabalho a contar para a poupança, que podia ser para uma máquina de lavar roupa ou um colchão de molas.

Este conforto de dormir numa cama sem aquelas lombas que se formavam nos colchões de lã era um luxo que, ali, na minha vizinhança, nem todos tinham. Ninguém sabia, de facto, o que era o luxo. As casas eram todas mais ou menos iguais, com mobílias semelhantes, os pais pensavam mais ou menos da mesma maneira e, nós, os filhos também. O conforto era uma coisa dos ricos e dos hotéis.

Era um sonho, assim como o meu, a adolescente de 14 anos, dependurada no varandim do terraço a ver parar os autocarros e a pensar em viagens, em vestidos bonitos, em estudar em Lisboa e em ganhar tanto dinheiro como a minha prima Ana, que era professora. E parecia tudo possível que, as casas pareciam desconjuntadas com os acrescentos, mas não faltava esperança.

Nem tempo para chegar a esse luxo de uma casa bonita, um carro novo, ao conforto de não andar aos solavancos dentro do autocarro, com as pernas a pegar ao banco nos dias de calor ou sufocar nos dias de chuva. Esse destino, que era nosso e era para todos, haveria de se cumprir.

A pressa, esta voragem que nos consome inteiros, não tinha subido encosta acima. Por ali, na curva de caminho onde cresci, os dias continuavam iguais, lentos, em tardes que se arrastavam, mornas e num silêncio cortado apenas pelo carrinho de rolamentos que descia o caminho ou pelo ladrar de um cão.