A terra do preto e branco
Em julho de 1993, numa quente manhã de céus azuis, chegava ao aeroporto de Ben Gurion, em Israel. Iniciaria um estágio médico no Wolfson Medical Center, em Holon, num subúrbio de Tel Aviv, ao abrigo de um programa que hoje equivaleria ao Erasmus.
Nos meses seguintes imergi na vida e cultura de Israel, do seu povo judeu e árabe (20% da população israelita). Constatei os elevados padrões de saúde e a excelência da sua Medicina, da qual tirei ensinamentos que tenho usado na minha carreira desde então. Aproveitei os fins de semana para percorrer o país e experienciar as nuances desta nação fascinante.
Visitei uma comunidade kibutz, onde pernoitei, assisti ao seu trabalho agrícola e senti o seu espírito pioneiro nos refeitórios comunitários. O sentimento de partilha que senti une de fato o Estado de Israel. Na altura uma sociedade tolerante, profundamente democrática e com esperança serena no seu futuro.
Marcou-me o Museu do Holocausto, Yad Vashem, onde senti orgulho nas ações do meu compatriota Aristides Sousa Mendes, cônsul português em Marselha, que contra as ordens de Salazar, salvou milhares de Judeus da morte certa nos campos de extermínio nazi. Revivi esse orgulho muitos anos depois ao conversar com jovens estudantes israelitas que, como eu, visitavam o campo de Birkenau, na essência, uma versão 2.0 situada ao lado de Auschwitz, na Polónia.
Uma certeza ficou-me sedimentada para sempre: a necessidade da existência de um Estado seguro e próspero, que albergasse o povo judeu, Israel.
Em setembro, fui convidado por uma jovem médica para uma festa de juventude, no caso partidária. Assim fui para a praia de Tel Aviv, onde presenciamos muita animação e alegria pela noite dentro, ao som de música e bandeiras israelitas, algumas palestinianas e até arco-íris. Demorei a perceber inteiramente o significado. Comemoravam a assinatura da “Declaration of Principles” dos Acordos de Oslo, que estabeleceria a Paz entre israelitas e palestinianos, com a divisão dos territórios. O herói da altura era Yitzhak Rabin, o general que deixou as insígnias e tornou-se o Primeiro-Ministro de Israel que negociou os acordos e foi Nobel da Paz.
Após uma curta visita ao Egipto e Jordânia, incluindo a Cisjordânia e Faixa de Gaza, regressei a Portugal com a sensação de ter presenciado a História a correr à frente dos meus olhos.
Um par de anos depois vi na RTP as imagens do assassinato de Rabin, às mãos de Yigal Amir, um militante judeu ultraortodoxo de extrema-direita. Senti o disparo da arma que o matou como também tendo apagado a experiência enriquecedora que tive em Israel e na Palestina.
Aqui chegado, já se passaram 30 anos sobre essa minha visita. A ultra ortodoxia de extrema-direita que motivou o assassino de Rabin é hoje a ideologia que orienta o Governo de Israel. A solução proposta nos acordos de Oslo, e votada na ONU, para a existência de “2 Estados” (Israel e Palestina) seguros e em paz, é hoje ridicularizada por Benjamin Netanyahu, a antítese de Rabin.
A história destes 30 anos é conhecida de todos. Maturei a minha perceção ao longo dos anos, e nas viagens ao mundo muçulmano que depois tive a oportunidade de fazer, nomeadamente aos Emiratos, Líbano, Turquia, Irão, Indonésia, Marrocos, entre outros. Percebi que cada moeda tem duas faces e elas são geralmente distintas.
No Irão percebi que, como já escrevi neste diário, há um povo persa que quer a paz, a prosperidade, os direitos das mulheres, oxigénio para respirar a liberdade, mas vive sob a jugo da ditadura Aiatolá, que financia e apoia o ódio a Israel e aos EUA, promove grupos terroristas como o Hamas, cuja brutalidade pouco ou nada diferem do ISIS ao da Al-Qaeda. E a capacidade do Irão ter a arma nuclear é ainda mais assustadora para todos.
Em Marrocos e na Indonésia, tão distantes do epicentro desta guerra, curiosamente percecionei um mesmo ditado Judeu: “O homem que pensa poder viver sem outro está equivocado; o homem que pensa que os outros não poderão viver sem ele, está ainda mais equivocado.” Pode Israel prosperar sem atender à dignidade dos palestinianos e à boa vizinhança dos inúmeros e populosos países vizinhos muçulmanos?
O ataque a António Guterres (e ONU) não é alheio a Israel ser um país que ignora as resoluções votadas das Nações Unidas. E o apoio humanitário aos civis em Gaza impede o timeline do exército israelita. O Hamas usa e abusa dos civis palestinos como escudo de defesa e propaganda e o massacre de civis judeus é hediondo e injustificável sob qualquer perspetiva. O bombardeamento israelita de civis palestinianos também o é. A conclusão óbvia, é que nenhuma das partes quer fazer sacrifício algum para procurar a paz. Isto deixa-me triste!
Hoje não tenho uma, mas sim duas certezas para que possa haver um futuro sereno: existir um Estado para o povo judeu; existir um Estado para o Povo palestiniano. E ambos com robustas garantias de segurança. Entre o preto e o branco, pode haver um bonito arco-íris a meio!