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A música e o ambiente

Desde os meados do séc. XX, a globalização tem aberto os mercados e tem criado públicos para a música erudita ocidental em lugares longe das suas raízes europeias. A sobrevivência da indústria da música (e não só erudita) depende em grande parte das digressões internacionais. As maiores agências artísticas mundiais organizam anualmente, cada uma, dezenas de digressões para quase todos países do mundo, muitas vezes implicando deslocações de bem mais de cem pessoas, quando se trata das orquestras.

Mas agora, encarando as provas científicas da realidade de alterações climáticas causadas pela humanidade, os profissionais desta área estão a sentir-se impulsionados para mitigar o impacto ecológico resultante destas atividades. Já existem iniciativas para autorizar a construção de novos edifícios dedicados à música apenas se se conseguirem aproximar ao objetivo de serem neutros em carbono.

Muitas casas da ópera estão a envidar significativos esforços para funcionarem dum modo mais sustentável, utilizando várias estratégias para reduzir as emissões de carbono e o impacto no planeta. Isso deve-se parcialmente às atividades dos ativistas climáticos cujas ações têm cada vez mais como o seu alvo as indústrias de arte e entretenimento. No ano passado, por exemplo, a Royal Opera House em Londres rescindiu todas as ligações com o seu patrocinador de longa data, o gigante petrolífero BP. Conforme um estudo no Reino Unido, 77% dos públicos esperam que os locais dos espetáculos incluam a questão da emergência climática nas suas atividades. Neste sentido, durante a pandemia, vários teatros britânicos colaboraram com os peritos em sustentabilidade para conceberem o Livro Verde Teatral, uma publicação que aborda produções, edifícios e operações, estabelecendo padrões para produções sustentáveis e fornecendo as orientações nesse sentido. Um dos principais colaboradores nesse projeto foi uma das casas de ópera mais respeitadas e importantes, Glyndebourne, cujo festival de verão atrai milhares de melómanos todos os anos. Em 2012, foi lá instalada uma turbina eólica de 67 metros que, ao longo da última década, tem produzido 102% da eletricidade utilizada pelo teatro no mesmo período. As maiores casas, desde a Ópera Nacional Inglesa a Ópera Nacional de Paris, têm agora uma página no seu site com as declarações da missão de sustentabilidade, garantias de aderência aos objetivos das Nações Unidas e estatísticas que demonstram a redução de uso de energia e emissões de carbono. O telhado da Ópera de Bastille é uma horta urbana, cultivada conforme agroecologia, contribuindo ao mesmo tempo ao isolamento térmico do edifício. Os cerca de cem cestos de frutas e legumes produzidos semanalmente são vendidos ao pessoal e residentes locais.

A Ópera de Sydney, tendo já alcançado a neutralidade em carbono em 2018, instalou um recife artificial no lado junto ao oceano, promovendo a biodiversidade marinha e apoiando as espécies autóctones. Os novos escritórios da famosa La Scala em Milão estão num edifício de energia zero, produzindo mais que gastando, devido aos painéis solares e um sistema geotermal. Durante a última década, esta casa de ópera tem reduzido as emissões de carbono em mais de 630 toneladas.

A atitude proativa está a ser tomada também pelos músicos e compositores, começando por Ludovico Einaudi que, em 2016, compôs a “Elegia para o Ártico”, que visa atrair atenção para o derretimento de glaciares. Um dos maiores compositores ingleses do séc. XX, Peter Maxwell Davies, compôs o “Adeus a Stromness”, uma cidade nas ilhas escocesas de Orkney, protestando contra os planos duma mina de urânio.

A Orquestra da Mudança (Orchester des Wandels) reúne músicos das melhores orquestras germânicas com o objetivo de abordar a crise climática em formatos inusitados de concerto, utilizando a música para inspirar os ouvintes. A Orquestra para a Terra (Orchestra for the Earth) reúne jovens músicos profissionais e compositores do Reino Unido com o objetivo de “proteger o mundo que a geração deles vai herdar e utilizar a música para motivar os outros para fazer o mesmo”. Em 2014, um CD intitulado “Uma gota que continha o mar” (The drop that contained the sea), escrito pelo compositor americano Christopher Tin e interpretado pela Royal Philharmonic Orchestra, surpreendeu por se ter colocado no topo das listas de popularidade entre os ouvintes, abordando a água e alterações climáticas. Em 2021, a Orquestra Beethoven de Bona foi nomeada a primeira Embaixatriz das Nações Unidas para as alterações climáticas.

A música, tal como as outras artes, tem o potencial de observação crítica e alteração de ideias fixas sobre a realidade. Por isso, não surpreende que os temas ambientais já se tenham tornado parte integrante da indústria da arte contemporânea.