As noites de chuva e vento
A água corria pelos degraus da entrada, enquanto o vento assobiava nos fios do telefone e da luz. Um esqueleto de uma joeira dava mais umas quantas voltas
A chuva nunca foi mansa lá por cima no Laranjal, vinha sempre agarrada a preocupações e canseiras. Ou era o muro da fazenda ou as flores do quintal e a minha mãe fechava-se dentro de casa, encostada à janela para ter luz e com o sentido no tempo. A meio do caminho para a casa das minhas tias um lago de água castanha obrigava a cortar a viagem em cima do muro e a molhar os pés e as pernas.
A água corria pelos degraus da entrada, enquanto o vento assobiava nos fios do telefone e da luz. Um esqueleto de uma joeira dava mais umas quantas voltas, tinha encalhado ali nos dias do calor, quando os rapazes da vizinhança as lançavam e as faziam voar com as suas caudas de trapos. O progresso não combinava com joeiras, mas esses dias grandes e de céu azul pareciam-me uma miragem.
Estava escuro, os eucaliptos e pinheiros vergavam com as rajadas. Eu já sabia, não se ia ver nada de jeito na televisão. O sobrinho do meu tio Humberto, o Marçal, trabalhava na Marconi e percebia de ondas hertezianas e de antenas. Quando instalou a nossa, no terraço, não deu esperança: a imagem ia ser sempre má nos dias de vento. O nosso azar era que as ondas iam dar aos eucaliptos e aos pinheiros e só depois à nossa televisão.
E essa má sorte era ver o telejornal e a telenovela com arroz e imagem fantasma, era quase como ouvir rádio. O melhor era ir mais cedo para a cama, ler um livro. Só que nem sempre havia livros, eu não tinha uma estante, isso veio muitos anos depois e custou 100 contos ao meu pai. Deu-me de presente já eu tinha acabado o curso e os livros amontoavam-se em torres pelo meu quarto.
A minha adolescência foi diferente. Ou pedia emprestado ou lia várias vezes o mesmo. A minha mãe não tinha os livros, aqueles que não faziam parte do programa escolar, como uma prioridade. O problema era o dinheiro, que era esticado, contado e contado mais uma vez antes de se tomar uma decisão e comprar fosse o que fosse. E era o medo que lhe dava a ideia de eu ter um esgotamento por ler muito e estar na mudança da idade.
Na vizinhança falava-se muito disso, das pessoas que enlouqueciam assim, como que do nada. A mudança da idade – que coincidia com a primeira menstruação – e os livros não se deviam misturar. Uma vez por outra, quando me viam sentada em cima do terraço com a cabeça enfiada num livro, as senhoras dos bordados avisavam: “dona Celina tenha cuidado, aquilo não é nada bom”.
Eu não percebia aquela história, mas havia muitas histórias assim, descabidas e estranhas como não lavar a cabeça ou não tomar banho todos os dias. Também fazia mal, mas não deixava de ler, nem de comprar livros. Nas noites em que ver televisão era, na verdade, mais um exercício de adivinhação, sempre havia umas páginas para ler no quarto, em cima da cama, até ajudava a esquecer a chuva, o vento, aquele desassossego lá fora, no quintal.