Crónicas

Não basta dizer ‘basta’!

Tivéssemos todos a autoestima e a autoconfiança a 100% e o racismo não teria onde assentar as suas raízes. Por isso, vale a pena investigar: o que é que nos habita e impede que o outro passe de ameaça a expansão e descoberta?!...

“Eu queria muito ser a preta diferente. Negava a minha negritude a todo o custo. Só me esquecia que a preta diferente que eu me esforçava arduamente para ser ainda era uma preta. No mar de branquitude eu sou a gota que destoa. A pele. O cabelo. O apelido. A ancestralidade. Ainda estava lá tudo. E gritava. Bem alto.” Esta declaração, da escritora Sandra Baldé, deixou-me em lágrimas, com um aperto no peito e invadida por um sentimento de culpa. Tornou gritante o inconsciente coletivo, o mesmo que me impediu de perguntar às minhas (poucas) colegas pretas se sentiam o mesmo que a Sandra. Não creio ter sido por não as considerar uma como eu, mas precisamente por isso, porque eu própria, não fazia ideia que era possível sentir tamanha crueldade. As palavras da Sandra levaram-me para dentro, para um tremendo exame de consciência, a procurar perceber se fui, realmente, porto seguro para os meus colegas pretos. É que a violência (ainda) vivida por estas crianças dentro do espaço de ensino, por parte de colegas e professores existe, é inconsciente e fruto da herança colonial. Não pode ser de forma alguma tolerada.

Segundo a European Social Survey, “existe racismo em Portugal”! Mais de 62% dos portugueses manifestam crenças racistas! É urgente ganhar consciência para que, de uma vez por todas, se pare de normalizar e perpetuar o que é repugnante. É essa a minha intenção com a crónica Essencial de hoje, contribuir para trazer luz, empatia e consciência de forma a que a transformação aconteça. O quanto antes. Porque nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado, mas nada pode ser transformado enquanto não for consciente. A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste pressuposto. Precisamos de elevar o nível de consciência com que abordamos o problema.

Assumamos que sim, existem comportamentos racistas! Existem sentimentos racistas! Existem expressões verbais racistas! Existem movimentos racistas! Há pessoas (demasiadas) possuídas por crenças racistas! Quem estuda as dinâmicas da psique, sabe que o complexo de superioridade é um mecanismo de defesa muito popular, que surge para compensar uma carência, um medo, uma insegurança relativa à própria autoperceção. Com a vulnerabilidade exposta, há quem seja impelido a assumir que o outro é uma ameaça. Perante a ameaça, vem o impulso de sobrevivência associado ao mecanismo da defesa, que se manifesta, por exemplo, pela necessidade de rebaixar o próximo, de forma a poder sentir-se superior e, portanto, (falsamente) seguro. Só que isto, além de desumano é apenas ilusório.

Lembro-me que há uns anos, uma campanha de marketing contra o racismo, usou o lema: "todos diferentes, todos iguais". A partir daí, parece que a palavra tolerância entrou no léxico comum. O problema é que ela esconde em si um preconceito. É como se disséssemos: "Eu estou aqui, ele está ali e... toleramo-nos, vá". E continuamos a olhar para o outro como estranho e inferior. Para erradicar o racismo é preciso investigar e desmontar a estrutura dos pensamentos, emoções e comportamentos. Quantos teremos já discutido o tema e dito: “Racista, eu? Jamais.” Pois... Só que uma das raízes mais robustas do racismo é que quem o vive não o reconhece enquanto tal. Parece que a sua ‘raça’ ser superior e uma outra ‘raça’ ser inferior é um facto. Essa crença, profundamente limitadora, pseudocientífica, enraizada, acima de toda e qualquer suspeita, essa pureza auto-proclamada e assumida é, além de falsa, absurda, cruel e perigosa! Na verdade, para vivermos em paz, em partilha e presença, não precisamos de ser iguais, devemos é ir para além do medo da diferença. Depois, descobriremos que, afinal, sim, somos iguais. Porque, não basta dizer ‘basta’!