E a vida como ela é...
O que está feito não tem remédio e soube bem, o bolo era dos bons
A caixa está vazia, mas vou guardá-la, dão sempre jeito. O bolo rei que vinha dentro durou pouco, quis despachá-lo depressa por causa das resoluções de Ano Novo, aquela em que prometi que os doces e outras extravagâncias acabavam no Dia de Reis. O que está feito não tem remédio e soube bem, o bolo era dos bons. E agora, pela frente, está Janeiro inteiro e é cedo para sabotar uma promessa ainda tão fresca.
Se este for um ano como os outros, se eu continuar a ser como sou terei tempo para encontrar desculpas e maneiras de contornar as ideias que me ocorrem na manhã do primeiro dia do ano e às quais dou sempre uma semana para a transição. A minha mãe dizia que a Festa só acabava nos Reis, depois sim, a vida voltava a ser como era. E a minha mãe seguia a tradição à risca. A 7 de Janeiro, que era também o dia em que fazia anos, havia como que uma convocatória para desmanchar o presépio, a lapinha e demais enfeites.
As searas eram atiradas para a fazenda e, com sorte, o trigo talvez desse espigas. A mim calhava embrulhar em papel as ovelhas, os pastores, o menino, a Virgem e do São José para guardar nas caixas de sapatos. O meu irmão ficava com os balões, fazia-os explodir e, depois, com os restos de borracha, fazia outros mais pequenos e tentava rebentá-los na minha cabeça. O contrário também acontecia, devo confessar. E, enquanto andávamos os dois nesta guerra dos despojos do Natal, a minha mãe enfiava as bolas e a gambiarra dentro de sacos; dobrava o papel do presépio para arrumar nos confins do armário.
A nossa casa retomava ao normal, limpa, já com o calendário da cozinha no ano novo. Era como a minha mãe gostava, nada lhe fazia mais confusão do que decorações de Natal para lá do prazo. E sem luzes a piscar no galho de ameixeira que fazia as vezes de pinheiro era possível regressar à rotina: bordar, receber as mulheres do bordado, ouvir rádio sem as músicas da quadra e falar dos problemas que a preocupavam. E eram muitos, mas todos estavam, de uma maneira ou de outra, relacionados com dinheiro.
Se havia ou não, se a reserva debaixo do papel que forrava a gaveta de cima chegava para os dias de chuva em que o meu pai não podia trabalhar. Eram problemas reais, complicados, mas que me pareciam impossíveis de acontecer. Não ia faltar, eu tinha a certeza que não, uma certeza que vinha de tudo e sobretudo da minha mãe, daquelas artes mágicas de nos manter vivos, limpos, alimentados e ainda nos incentivar a pensar, a estudar e a sonhar. Ela sonhou sempre com uma casa de sobrado e um lago com peixes, um daqueles com repuxo.
E era inspiradora. Ainda é. Algumas pessoas são assim: fazem mover o futuro, não para si, mas para os outros. A minha mãe perdeu as oportunidades para a ditadura, para os preconceitos de classe e de género, mas acreditou que connosco podia ser diferente. E foi. Se fosse viva, faria 87 anos.