Linguagem corrupta e paixão da verdade de Bento XVI
Falar de Bento XVI e doutros papas pode levar à confusão. Ouvi vários especialistas e teólogos a pôr em foco aspetos pastorais dos pontificados de papas até João XXIII e de Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento VI e agora Francisco. A tentação é pôr um na ribalta e outro na sombra. Alguns comentadores deixam a impressão de que a Igreja só será a de Cristo com as alterações que eles propõem, como se a Igreja deste ou daquele tempo ou papa não valesse por lhe faltar o que eles propõem. Como se no Calvário a Igreja não fosse já a de Cristo, pequeno rebanho sem excluir os afastados por medo. Querer mudar a Igreja por outra já foi tentado e não tem sido fácil reparar alguns males com o ecumenismo.
Bento XVI tentou unir a fé à razão e à ciência com clareza de linguagem quando, fora e dentro da Igreja, o pensamento se contaminava de cientismos e ideologias. Ainda cardeal, levantou um alerta contra a “ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo” (8.04.2005). A corrupção da linguagem e pensamento acompanha o relativismo como, talvez, uma das maiores crises atuais. O helenismo clássico e cristão do Logos nos primeiros séculos ajudou a encontrar termos adequados para algumas verdades da fé cristã. O concílio ecuménico de 325, o primeiro, sobre o arianismo que negava a divindade de Cristo será celebrado em 2025.
Este ano inicia-se no meio de crises, umas da maldade humana e outras dos gemidos da natureza associadas às primeiras; duas dezenas de guerras, algumas menos divulgadas, a pandemia e a corrupção da linguagem e do pensamento. Os livros 1984 e Animal Farm de Orwel descrevem a ditadura que é também de corrupção da linguagem. Esta avoluma a confusão, incertezas, medos e ansiedades. Com ela, as ideologias do liberalismo, totalitárias, marxista e nazista, contaminam o pensar científico, a racionalidade e a expressão da fé. O divulgado testamento espiritual de Bento XVI e o título do livro do secretário de Bento XVI “Nada mais que a verdade” focam esta crise. Em 12 de setembro de 2008, nos Bernardins em Paris, Bento XVI insistiu na importância de os católicos assumirem a razão. A Palavra de Deus (Logos), vai sendo rebaixada ao nível de opinião, ao passo que as corruptelas do pensar tornam-se dogma, como tantas das expressões da ideologia do género. Bento XVI já em 2010 afirmou em audiência geral que «o Povo de Deus precede os teólogos (…) graças àquele sensus fidei sobrenatural, ou seja, àquela capacidade infundida pelo Espírito Santo, que habita e abraça a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente (…) são "magistério que precede". "Existem grandes teólogos» para quem o essencial permaneceu escondido! E, pequeninos que conheceram este mistério (Aud. Geral, 7 de julho 2010).
No testamento, Bento XVI recomenda: «permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro — seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica». Como profundo estudioso continua: «Pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência». E acrescenta que apesar de ser no diálogo com as ciências naturais que a fé aprende a compreender melhor o limite do alcance das suas afirmações e sua especificidade, tenho visto teses, que pareciam inabaláveis, ruir por serem simples hipóteses. E concretiza: «Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses (das gerações liberal (Harnack, Jülicher etc.), existencialista (Bultmann etc.), e marxista), tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé». E usa chave de ouro da fé cristã para todos os tempos:
«Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida - e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é realmente o Seu corpo». Para o ano novo do calendário, no meio de tantas crises e aflições, Bento XVI continuará a ser surpresa e promessa de esperança cristã para os batizados abertos à verdade e ao amor de Deus, e de todos os irmãos.
Aires Gameiro