A mulher de César
Corria o ano de 62 A.C., e se, nessa época distante, existissem tablóides e telejornais das oito, esses media estariam cheios da fofoca do dia: Júlio César divorciava-se da sua segunda mulher, a bela Pompeia Sula. A causa? Um jovem atrevido ousara entrar, disfarçado de tocadora de lira, numa festa só de mulheres, em casa de Pompeia. Desmascarado, foi expulso, mas imediato o incidente foi comentado em toda a Roma. Júlio César decretou o divórcio, mesmo reconhecendo todos os factos e a inocência da mulher. Justificou-se com uma frase tornada célebre: “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.
Dois mil anos passados estamos cheios da irmã, do primo, do sogro, da tia, do afilhado e da enteada da mulher de César – isto citando só alguns. Uma maldição abateu-se sobre os detentores dos cargos públicos, que agora têm de declarar que não têm os referidos irmão, primo, sogro, tia, ou enteada, a desempenhar qualquer cargo ou profissão, sob pena de ser acusados de serem irmão, primo, sogro, tia, ou enteada do dito detentor do cargo público.
Se por um lado isto parece limitativo e castrador, por outro lado abre uma perspectiva de inclusão social: os detentores de cargos públicos passariam a ser procurados na roda dos expostos, nos orfanatos, nos abandonados, nos sem-abrigo e entre outros deserdados da sorte.
Assim ficaríamos livres da suspeição do conluio dos irmãos, primos, sogros, tios ou enteados.
Isto porque, ao contrário do que se pensa, não estamos no estádio civilizacional do indivíduo, conforme se apregoa. Num misto de atavismo medieval e de estalinismo resiliente, a responsabilidade e a culpa não são individuais, mas colectivas e partilhadas.
De modo que, em vez de averiguar um eventual nepotismo (de nepote, sobrinho, em italiano), lança-se de imediato o labéu nos laços familiares.
Estranho é que empresas familiares prosperem, sem que o grau de parentesco ameace o bom andamento dos negócios, e sem que ninguém conteste a legitimidade da empresa.
Os problemas surgem quando se chega a um ponto de saturação e mesmo de conflito, exacerbados por convivência excessiva e sufocante.
Então a separação é inevitável, com prejuízo da unidade familiar e dos destinos da empresa.
O que nos deveria levar a repensar o dito de Júlio César.
Sabendo que Pompeia estava inocente, porquê aquela atitude radical, sem debate contraditório?
Para muitos, tratava-se de preservar a honra e imagem do próprio Júlio César.
Mas há outra explicação: estava simplesmente farto dela, e o pretexto era bom.