Brasil de volta à América do Sul depois de quatro anos de afastamento
A posse de Lula significa o retorno da prioridade brasileira pela integração da América Latina, numa estratégia que visa representar a região como ferramenta de inserção global, em diferenciação com Jair Bolsonaro, quem virou as costas para a vizinhança.
"Com Lula, a América do Sul vai voltar a funcionar como região, algo que, com Bolsonaro, não foi possível. Bolsonaro não só deu as costas para os países vizinhos, mas para a política externa tradicional do Brasil. Com Lula, essa dinâmica muda e a integração regional volta a ser a plataforma de inserção internacional do Brasil", indica à Lusa o analista argentino, Rosendo Fraga, uma referência em política internacional na América do Sul.
Durante os dois anteriores mandatos de Lula (2003-2010), a síntese da política externa brasileira interpretava que, para ser um ator global, o Brasil deveria liderar a sua região, uma liderança baseada na representação da região nos foros internacionais.
"A liderança que o Brasil exerce não é hegemónica, mas de representatividade de toda a região. Com essa representatividade, o Brasil fortalece a sua projeção entre os líderes globais", explica Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria.
O novo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, foi o embaixador brasileiro na Argentina (2004-2010), durante praticamente os dois mandatos de Lula como presidente.
"O Presidente [Lula] me pediu e me orientou [para] que eu traga o Brasil de volta à cena internacional. Será uma política de reconstruir pontes. Em primeiro lugar, com nossos vizinhos sul-americanos. Em seguida, que também é nosso ambiente próximo, a América Latina em geral", definiu Mauro Vieira, em conferência de imprensa em Brasília há duas semanas.
A data simbólica para esse retorno do Brasil é 24 de janeiro, quando os chefes de Estado da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) reúnem em Buenos Aires por ser a Argentina o país a exercer a Presidência rotativa do foro. O Presidente argentino, Alberto Fernández, amigo de Lula e, portanto, automaticamente inimigo político de Bolsonaro, vai contabilizar como um triunfo pessoal ter trazido o Brasil de volta.
Um dia antes, Lula deve ter uma bilateral com Fernández, inaugurando as suas viagens internacionais, tendo a Argentina como primeiro destino, uma prática que Bolsonaro abandonou, rompendo uma tradição iniciada em meados dos anos 1980, quando Brasil e Argentina, tornaram-se um o sócio político e estratégico do outro e estabeleceram o eixo da integração regional.
"O Brasil vai voltar à CELAC e vai tentar revitalizar a UNASUL", sublinha Rosendo Fraga, em referência à União das Nações Sul-americanas.
Quando Jair Bolsonaro chegou ao poder há quatro anos, manteve relações bilaterais e ideológicas, apenas com os países governados pela direita. À medida que esses países passaram por processos eleitorais, vencidos pela esquerda, Bolsonaro afastou-se.
Em janeiro de 2020, alinhado aos interesses dos Estados Unidos, Jair Bolsonaro decidiu suspender a participação do Brasil na CELAC, um projeto idealizado pelo venezuelano Hugo Chávez. O objetivo alegado foi o de esvaziar a voz de Cuba, Venezuela e Nicarágua, regimes autoritários da região.
Em abril de 2019, por considerar um projeto de integração da esquerda, Bolsonaro decidiu seguir o exemplo de outros países, então governados pela direita, e retirou o Brasil da UNASUL, um projeto criado pelo venezuelano Hugo Chávez e por Lula.
O novo chefe da diplomacia brasileira, Mauro Vieira, confirmou que o Brasil vai retomar as relações diplomáticas com a Venezuela.
Porém, o mapa político e a agenda da região são bem diferentes 20 anos depois de Lula ter chegado ao poder pela primeira vez. Se Lula foi o líder ativo e carismático que apontou o caminho para o modelo regional de políticas públicas contra a desigualdade, desta vez, a sua influência tende a ser mais horizontal e as suas alianças, em questões mais específicas.
"Vejo níveis de influência mais horizontais, em contraposição a uma hegemonia vertical que guie a discussão regional. Acredito que a aliança de Lula com os governos de esquerda da vizinhança será em torno de temáticas específicas. Não vejo uma aliança em torno de políticas económicas", aponta à Lusa o cientista político peruano, Carlos Meléndez, especialista em análises comparadas entre os países da América Latina.
"Em outras palavras, Lula será mais ativo na COP do que em Davos", ilustra Meléndez, em referência à Conferência do Clima da ONU comparada o foro líderes mundiais sobre a economia global.
Carlos Meléndez, da universidade chilena Diego Portales, acredita que "a expectativa dos governantes de esquerda com Lula seja moderada" porque sabem das limitações do novo Governo brasileiro tanto "porque a economia brasileira encolheu nos últimos anos" quanto porque, no passado, usou os créditos estatais "para negócios com empresas brasileiras numa política que derivou em escândalos de corrupção" em vários países da região.
"Há diferentes tipos de esquerda na região que carregam determinados passivos. A esquerda bolivariana tem o passivo do autoritarismo. A esquerda petista carrega o passivo da corrupção que afeta a sua autoridade moral. Isso atenua o papel desses atores no exercício da liderança regional e será o alvo da direita da região", avalia Meléndez.
Para o especialista, esse menor poder de fogo de Lula, por um lado, encontra novos líderes de esquerda, por outro, como o chileno Gabriel Boric e o colombiano Gustavo Petro com os quais Lula deve formar uma aliança que tende a ser mais simbólica do que decisiva, abordando questões pontuais da nova agenda da esquerda regional como meio-ambiente, identidade de género e povos indígenas.