Um presépio com história e identidade
Na visita tradicional aos vários presépios públicos dispersos por toda a ilha, fica na interioridade de cada um nós um rol de vivências e memórias de quotidianos quase perdidos, por onde as eiras, os campos de trigo, a cana sacarina, os moinhos movidos a água das nossas fundas ribeiras e levadas, o árduo trabalho das vindimas; os arraiais e as inseparáveis bandas de música foram peças constituintes da história e de formas de identidade das nossas populações, sobretudo, aquelas que se fixaram pelas Achadas, pelos Lombos e pelos Serrados e Azinhagas das pequenas geografias da ilha rural. Um feito só de gente maior marcada por uma resiliência desigual, adquirida das profundezas das vicissitudes de tempos distantes e difíceis de vencer.
É neste mergulho às vivências de épocas e natais distantes que, mais uma vez, trago ao leitor o presépio da comunidade da Ribeira Sêca. Presépio este sempre diferente de ano para ano, com mensagens inquietantes e sugestivas à reflexão sobre narrativas que emparelham a história com a identidade da comunidade local. Neste sentido e inspirado no tema abordado nas tradicionais missas do parto (as vivências dos natais desde o povoamento da Ribeira Sêca à atualidade) os jovens dos mais diferentes níveis de escolaridade deram corpo a essa temática, reconstituindo sobre o palco aberto da Igreja a história e os seus aspetos mais centrais da quotidianidade dos seus antepassados. Dessa reconstituição podemos ali encontrar os campos de trigo, uma das suas primeiras culturas de subsistência, bem como a cana sacarina - o nosso ouro branco e o plantio de vinhedos ocorrido em força após o declínio da indústria açucareira. Tudo isso representado cronologicamente no sentido norte para sul do presépio, como se essa disposição se tratasse do prumo do tempo, alinhado aos ecos de um passado deprimido por um longo período do regime da colonia.
Nesse alinhamento é possível observar, talvez, a matéria prima da primeira experiência industrial do século XVII em Machico: a indústria tintureira, que se instalou na Ribeira Sêca, localidade onde a planta tintureira e o pastel existiram em abundância, numa altura em que por toda a Europa se desenvolvia este tipo de indústria. Desta experiência ficaram para os anais da história os topónimos de lugares desta localidade, como o sítio do Tintureiro e do Pastel.
É possível ainda, acompanhar no mesmo espaço e no mesmo andamento cronológico os movimentos de resistência de natureza religiosa, os quais marcaram a contemporaneidade da história desta população, ainda com algumas feridas vivas, que retemperaram a construção dos natais deste último meio século sentido e vivido pela população local. As suas ocasiões de isolamento e de regozijo inscritas em pedra de calçada no átrio da igreja são o garante da continuidade deste estilo de presépios que fazem pensar, analisar e refletir em liberdade. Ao Pe. Martins Júnior, o mentor e arquiteto desta forma de fazer e pensar presépios com arte, história e identidade a minha profunda gratidão.
Severino Olim