Flores, medo e desesperança na paz aos pés da poetisa Ucrainca
Aos pés da poetisa Lessia Ucrainca na Avenida da Ucrânia, no centro de Moscovo, deixam-se agora flores e brinquedos em memória das vítimas inocentes da guerra, mas a medo e com pouca esperança de regresso da paz.
Logo a seguir à explosão de um míssil num prédio residencial da cidade ucraniana de Dniepre, que a 16 de janeiro fez dezenas de vítimas civis, a estátua da poetisa de origem ucraniana converteu-se num ponto de homenagem onde ainda acorrem diariamente dezenas de moscovitas, sob vigilância policial, conforme observou a Lusa no local.
Após depor um ramo de flores aos pés da poetisa, uma professora universitária moscovita acedeu a falar à Lusa, mas só depois de se afastar de dois polícias que vigiavam o monumento e com a condição de não ser identificada.
"A guerra está para durar. Não vejo como... não", lamentou à Lusa a professora de Direito num estabelecimento do ensino superior da capital russa, questionada sobre a possibilidade de um entendimento entre os beligerantes, quando se aproxima o primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022.
Apesar de não ter tido problemas em fazer a homenagem, a cidadã moscovita relata que, nos primeiros dias de 'romaria' ao local, elementos da organização nacionalista pró-Kremlin SERB, alegadamente financiada pelo Ministério do Interior, "chamaram a polícia e entregaram-lhe pessoas que aqui vieram em meditação e deixar flores" junto à estátua.
Confrontada com os argumentos oficiais russos para justificar a invasão do país vizinho, de que está sob jugo de "nazis" e recorre a forças nacionalistas, como o batalhão Azov, a interlocutora da Lusa rebate sem hesitação.
"É preciso ver que também do lado russo há forças nacionalistas, como as do SERB. Eu nem considero que os soldados do batalhão Azov sejam de tendência nazi", salientou.
Independentemente das palavras dos líderes políticos e militares, e do papel das potências estrangeiras, esta moscovita trouxe flores pelas vítimas inocentes de um conflito sem fim à vista.
"Deixei ali as flores como uma homenagem às vítimas daquela tragédia [de 16 de janeiro]. É um gesto individual, como cidadã consciente, apartada de qualquer organização", frisou.
Outras pessoas que por ali se deixavam ficar não quiseram falar à Lusa.
Abordados pela Lusa enquanto vigiavam o movimento em torno da estátua da poetisa, os dois polícias deram conta de "normalidade" na zona.
"Nos dois primeiros dias, a afluência foi de algumas dezenas de pessoas, mas agora não mais de umas vinte pessoas por dia aproximam-se do monumento e deixam flores. Ao contrário do que foi dito, não foi feita nenhuma detenção, não houve qualquer alteração da ordem pública", disse à Lusa um dos polícias, que não quis identificar-se.
A poetisa Ucrainca (1871-1913) trabalhou na tradução do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, além de ter interpretado dezenas de canções populares ucranianas, deixando cerca de duzentas gravadas.
Ucrainca (pseudónimo de Larysa Petrivna Kosach-Kvitka) falava nove línguas e traduziu diversos clássicos ocidentais, tendo participado nos movimentos nacional e feminista ucraniano, e escreveu mais de cem poemas durante as suas viagens fora da sua terra natal. Criou ainda mais de uma dúzia de obras dramáticas e está ligada ao surgimento de um novo género na literatura ucraniana - poemas dramáticos ou drama em verso, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
O seu 150º aniversário de nascimento, a 25 de fevereiro de 2021, foi celebrado pelas autoridades da Ucrânia em associação com a UNESCO, que no seu site enaltece os "valores de paz, tolerância, igualdade de género e etnia, bem como os poderes de inclusão" que a autora "professou ao longo da sua vida, deixando para trás um vasto património literário, que afeta profundamente o discurso cultural ucraniano e internacional até hoje".