Crónicas

Duro e intransigente

Não batia certo o tamanho, a roupa feita em casa, o relógio dourado e o guarda-chuva de encolher que a minha mãe me obrigava a levar todos os dias

Passámos por muito, eu e os outros todos a quem calhou viver os anos a seguir à revolução. A desordem que trouxe baralhou tudo e, até lá por cima, no Laranjal foi preciso fintar o custo de vida, a escassez e encaixar coisas modernas como a escola para todos – meninos e meninas – e outras liberdades para as mulheres como usar calças, decotes e ir ao café sem, com isso, ficar falada.

A fama de uma mulher era um valor muito importante. E, pressionada pelo que se podia dizer, a minha mãe fez o melhor que soube e pude. Uns dias antes de entrar para o 1º ano do ciclo comprou-me um relógio de pulso para não perder o autocarro e, depois, sentada na beira da cama do meu quarto, colocou-me o assunto em termos que nunca esqueci.

Eu podia estudar até onde quisesse, nunca me faltaria apoio, mas não me era permitido faltar as aulas, tirar negativas nos testes ou distrair-me com rapazes. À primeira falha, ao primeiro passo em falso vinha para casa, quanto muito tirava um curso de costura ou acabava a bordar. O futuro, com curso e uma vida independente, caiu-me assim nas costas, de uma vez e devo dizer que me assustou muito.

Lembro-me que quis dizer que não me ia distrair, mas a minha mãe via mais do que uma menina de 10 anos, nem sei se percebeu como estava cheia de medo. E se não conseguisse? As pessoas diziam coisas, muitas coisas e eram todas terríveis. Havia a história dos bons alunos na primária que, depois, ficavam como que atrasados e perdiam anos só por ter deixado de ter apenas um professor.

Das raparigas contavam que se deixavam levar pela conversa dos namorados, que se desinteressavam. Ou então que ficavam sem juízo por estudar muito. Não sei se as mães de agora têm estas conversas com as filhas, mas a mim aqueles conselhos não me aliviaram no momento em que estava prestes a deixar o meu mundo conhecido e que ia do Campo do Marítimo ao Jamboto.

Eu tinha vários obstáculos para derrubar antes de me preocupar com rapazes como entrar no autocarro sozinha, mostrar o passe ou dar o dinheiro para pagar o bilhete. E ia para uma escola nova, com pavilhões, salas, um bar para comprar bolos, uma biblioteca e professores intrigados com o meu tamanho, a perguntar-me se era repetente.

E era preciso tirar o sumário, sublinhar a vermelho, separar por disciplinas e, pelo meio, sentia-me paralisada pelo campo minado das amizades pré-adolescentes. Quem, daquelas miúdas desenvoltas, teria interesse em ser minha amiga, a rapariga chegada das zonas altas a quem a timidez tornava ainda mais esquisita. Não batia certo o tamanho, a roupa feita em casa, o relógio dourado e o guarda-chuva de encolher que a minha mãe me obrigava a levar todos os dias dentro da bolsa da escola.

Também não ajudava não ter permissão para ir às festas de anos, nem a outro sítio qualquer. A minha mãe vivia preocupada com isso, com o passo em falso que me afastaria do futuro, dos sonhos mais bonitos. Não sei se alguma vez compreendeu o peso que me colocou em cima, de como o tentei carregar o melhor que sabia e de como era difícil ser, ao mesmo tempo, responsável e adolescente.

Foi um treino duro, a minha mãe intransigente preparou-me para quase tudo e devo-lhe isso, mas às vezes penso como teria sido bom se me tivesse deixado ir a festas, a bailes, ao cinema e ao café com amigas e amigos.