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A última “Placa Central”

Vivia muitas vezes no “seu mundo” mas era tão genuíno nesta forma de estar

Provavelmente poucos sabem que o Duarte de Ornelas e Vasconcelos Jardim era meu tio (e padrinho). As minhas primeiras memórias do meu tio Duarte são a ouvir o relato do Nacional com o meu avô Lino deitados a fumar depois dos almoços de domingo na casa dos meus avós. Escreveu durante 25 anos a crónica “Placa Central” no Diário de Notícias. Só quem sabe o que custa escrever regularmente e expor ideias em público é que pode compreender o que isto significa de esforço intelectual. Foi um acérrimo defensor da sua Madeira, do seu Nacional e de ideias controversas sobre desenvolvimento, transporte e turismo inspiradas por dezenas de viagens às Canárias onde passava invariavelmente férias com a minha tia Fatinha e a Carolina que deve conhecer aquelas ilhas como ninguém.

O irmão mais velho da minha mãe era um personagem único. Talvez a pessoa mais distraída que conheci. As histórias contadas na família são tantas e tão engraçadas que por vezes se confundem com anedotas. Contavam que se teria esquecido da arma numa parada quando estava no serviço militar e que isso lhe teria custado uma despromoção. Quando fui seu aluno na Bartolomeu só se apercebeu disso passadas várias aulas. Nunca mais me esqueço que a meio da aula olhou para mim e perguntou “o que é fazes aqui?!”. Só quem não conhecia o meu tio Duarte não pode acreditar que ele não fazia ideia de que o seu sobrinho era seu aluno (na altura isso pelos vistos era possível). Acho que tive as notas máximas, mas não tive vida fácil porque o meu tio era uma pessoa de uma ética exemplar muito presente em todas as vertentes do seu percurso profissional, pessoal e familiar.

Não conheço ninguém que se tenha desentendido com o meu tio. Nunca lhe ouvi uma palavra desagradável sobre ninguém. Vivia muitas vezes no “seu mundo” mas era tão genuíno nesta forma de estar que ninguém lhe levava a mal. Nunca tirou carta de condução talvez por saber que era demasiado distraído. Subia e descia todos os dias a encarnação a pé para ir dar aulas à Bartolomeu. Eu, que vivia em Santa Luzia já depois do 5º e 6º anos, cruzei-me com ele inúmeras vezes sem uma palavra. Cada um entregue aos seus pensamentos. Era talvez a característica que tínhamos em comum. Imersos nas nossa ideias, alienados do que nos rodeia, e por isso pouco suscetíveis ao provincianismo da insularidade.

O meu tio Duarte era um pensador livre qualidade rara numa terra de tanto pensamento único e onde a vassalagem ao poder era o garante de uma carreira. Discordamos de tantas ideias que ele tinha sobre o desenvolvimento da Madeira. Eram controversas, mas sempre baseadas em factos e evidência e não em modas e interesses - o que é notável para quem fez opinião durante 25 anos. Foram inúmeras as discussões nos jantares de Natal, dia de aniversário da minha mãe, onde a família se reunia lá em casa. Jantares que incluíam invariavelmente discussões sobre as crónicas do Duarte e as histórias do Zeca, o irmão rebelde mais novo que também já partiu. Nunca conheci irmãos tão diferentes tal como a minha mãe e o Alberto os mais próximos. Frutos de uma educação liberal dos meus avós de respeito pela personalidade de cada um, sem julgamentos. Recordo com ternura a forma como me telefonava quando gostava de uma das minhas crónicas no Diário. Imagino que se revia no exercício de exposição pública porque os estilos são muito diferentes. O meu tio Duarte era de uma gentileza blasé única.

Acompanhei de forma distante o sofrimento destes últimos anos, pela minha mãe que tanto lhe custou ver mais um irmão partir. Não consegui ir ao funeral. Mas fica aqui uma singela homenagem na forma que ele tanto apreciava de um artigo no Diário. Adeus, tio, até sempre.