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Bach ou Madonna?

A cultura ocidental muitas vezes atribui à música erudita, dita clássica, o papel de entretenimento relaxante para os abastados. A ideia de que a música é uma coisa relaxante tem algo em comum com a ideia de que se trata do entretenimento para as classes altas (aquela gente habitualmente descrita, com ironia, como a que veste o seu “fato de domingo” para cochilar ao longo de interpretações das mesmas 10 sinfonias por mesmos 10 compositores que se todos parecem um ao outro). É que os proponentes das duas ideias procuram enfiar a música clássica numa caixinha acorrentada, em vez de nos encorajarem a nós próprios pensarmos sobre o assunto, na procura duma perspetiva mais esclarecida.

Não inspira mais confiança também a ideia de que a música clássica é mais espiritualmente elevada do que qualquer outro género de música. Essa ideia implica que ouvir a música de Bach é mais indicado do que ouvir uma de Madonna, porque a música de Bach é de alguma maneira mais intelectual, estimulante e merecedora de contemplação. Essa atitude também tende a simplificar demais a própria música clássica. Mas se prevalece a impressão de que a clássica é mais difícil de compreender, as pessoas tratam-na com um certo afastamento. Muita energia é perdida nas tentativas fúteis de convencer as pessoas de que a música clássica é singularmente merecedora do nosso tempo, enquanto, na verdade, se deve gastar mais energia a tentar encorajar as pessoas a encararem essa música sem preconceitos e a sentirem à sua própria maneira e com as suas próprias respostas emocionais.

A música clássica é muito apreciada pela sua capacidade de fomentar em nós a sensação da paz e isso por si tem o seu próprio valor. No entanto, a linguagem que utilizamos para a descrever e valorizar influencia em muito a perceção dum potencial apreciador, sobretudo se se tratar dum encontro inicial. A música é venerada pela sua capacidade de desafiar e eludir a linguagem descritiva – o nosso fascínio é parcialmente provocado pelo facto de nunca chegarem as palavras para a descrever. Se utilizarmos uma linguagem que a delimita, corremos o perigo de obscurecer a sua essência.

Nos últimos anos foi efetuada pesquisa abrangente sobre o impacto da música clássica na memória, criatividade, produtividade e até pressão arterial. Por isso, não é de admirar que muitas estações de rádio e transmissão na Net utilizem sugestões tais como: “Tome um tempinho para relaxar”, ou “Eleve-se acima de tudo”, ou “Acalme e refresque” para “vender” a presença da música clássica nas suas ondas. Mas podiam utilizar as mesmas dicas para promover cruzeiros de Caraíbas ou um vinho particularmente requintado. Segundo eles, a música clássica não é realmente para ser ouvida e existe para relaxarmos, desligarmos, nos afastarmos. Deste modo, uma forma de arte com mais de cinco séculos de tradição reduz-se a uma trilha sonora num spa. E essa publicidade está concebida desta maneira propriamente porque há quem tenha medo da música clássica ser percebida como inacessível e elitista.

Felizmente, as salas de concerto estão a ser cada vez menos ocupadas pelas historicamente evocadas e estereotipadas figuras de “brancos ricos com monóculos”, a cultura é cada vez menos a “propriedade” daqueles que costumavam ser únicos com o poder de a comprar (embora a talvez menos entendessem), e o público cada vez menos terceiriza as suas opiniões a alheios, estando aberto e cada vez mais preparado para formar as suas próprias opiniões, através duma audição profunda e deliberada.