Crónicas

A avó, a fotografia, a moda, o tempo

Num texto intitulado A Fotografia* e originalmente publicado no jornal Franfurter Zeitung, a 28  de outubro de 1927, o seu autor, Siegried Kracauer, inaugura-o com uma especulação em torno de uma imagem fotográfica que dá o “aspeto” de “uma diva do cinema” numa “capa de um jornal ilustrado”. Aí realça o aspecto material/técnico da imagem (“os milhões de pontinhos que compõem a diva”), mas apenas para destacar que a intenção subjacente a esta, ou aquilo a que ela se refere, não é [naturalmente] à técnica,”à rede de pontos”, mas à própria diva, “que viva” se encontrava num local designado de Lido – portanto, imaginamos, numa zona balnear.

Kracauer indica que no momento em que escreve a fotografia tem já mais de sessenta anos e a diva, que na imagem tem vinte e quatro, é entretanto talvez uma avó já morta. É em torno desse ‘talvez’, da incerteza de um reconhecimento através da fotografia, que incide inicialmente o seu belo texto, incontornável para aqueles que gostam de pensar em torno da fotografia. Refere ainda que os pais crêem saber tratar-se de uma fotografia da avó, mas que  “os testemunhos são duvidosos”, e a transmissão de recordações da vida da avó pelos pais aos filhos se resume a “uma história maldosa” e “dois boatos confirmados que, de geração em geração, se alteram um pouco.” Através da memória da imagem da avó, o reconhecimento por semelhança com a fotografia também não se revela fiável: tanto pelos netos terem uma imagem da avó muito diferente da dos seus vinte e quatro anos (Kracauer não o menciona explicitamente, mas parece-nos evidente ao ler o seu texto), como por a fotografia estar desvanecida pela ação do tempo. Em suma, o esforço dos netos de ver na fotografia  “a avó que lhes foi legada fragmentadamente” não pode confiar na semelhança porque esta “já não serve de auxílio”, e assim esta imagem passa de uma fotografia de família a um documento de época num instante. Além disso, vista a sua incerteza (e) perante a imagem, os netos riem dos trajes da época, reagem à sua dimensão de fóssil, de “manequim arqueológico”, àquilo a que Roland Barthes chamará mais tarde o studium da imagem fotográfica. A imagem é agora (nada) mais (que) um elemento ilustrativo dessa cultura indumentária; algo que nos remete a como as pessoas naquela época se vestiam.

Mas chegados a este ponto perguntamos, que imagem nos devolve neste momento a sugestiva descrição de Kracauer? Talvez, num primeiro momento, a noção de que o gesto de olhar e de falar sobre fotografias que se situam nesse limiar entre a recordação familiar, pessoal, e o documento de época exige uma performance da memória, esse movimento entre o não reconhecimento, a falência da semelhança e a sugestão da memória que nos foi somente legada. A segunda é, precisamente, a relação entre a fotografia e a indumentária, ou melhor, a moda. A moda do passado como marca do estranho, do risível, mas igualmente como fascínio de um tempo que passou, (ou) como marca histórica que pode precisar o contexto geográfico e cronológico de uma fotografia. Igualmente, a moda como fenómeno essencialmente construído através da imagem (fotográfica) – pensemos naquilo que se construiu como um género autónomo sobejamente conhecido, a fotografia de moda.

Kracauer precisa que os netos riem daquele traje da avó e que este “fica sozinho a defender o campo de batalha” a seguir ao desaparecimento daquela que o usava, tornando-se este, por sua vez, “uma decoração exterior que se autonomizou”. Ao olhar para esta imagem que aqui se reproduz, não consigo deixar de pensar o mesmo, como também nesta o vestido às riscas se autonomizou e, juntamente com o penteado e o cordão que da manga pende, apresenta e assinala à semelhança daquela o arrepiante “tempo que passa sem retorno”.

* Recorri à versão traduzida por Nélio Conceição para o livro Fotogramas: ensaios sobre fotografia, publicado pela Documenta:Sistema Solar em 2016, com coordenação e organização de Margarida Medeiros.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.