Crónicas

Outra vez a boa governança

1. Disco: Iggy Pop lançou mais um disco. “Every Loser” marca o regresso do avô do punk a uma pureza inicial inesperada. Um conjunto de canções politicamente incorrectas. Iggy não tem paciência para wokismos, nem trollismos. “Every loser needs a bit of joy”, canta-se em “Comments”. Óptimo.

2. Livro: num podcast que já não recordo, falava-se dos melhores livros do ano passado. Alguém recomendava Sergio del Molino. Fui ver quem era e achei interessantes as temáticas dos seus livros. Será a primeira vez que aconselho um livro que não em português: “Lugares fuera de sitio: Viaje por las fronteras insólitas de España”. Gibraltar, Ceuta, Melilla, Andorra, Olivença, Llívia e Rio de Onor, são os lugares por onde o autor nos leva de viagem. Uma prosa próxima e despreocupada tão característica dos bons escritores.

3. A governança tem a ver com mecanismos de liderança, de estratégia e de controlo. Mecanismos esses postos em prática para avaliar, dirigir e monitorizar a actuação da gestão, tendo como objectivo a orientação de políticas públicas e a prestação de serviços de interesse de todos. Governança não é o mesmo que gestão. Esta cria e define linhas orientadoras e a gestão realiza o previamente definido.

Assim, a governança envolve a avaliação dos cenários, das alternativas e dos resultados conseguidos e dos pretendidos, de modo a direccionar a preparação e a coordenação de políticas e de planos, alinhando as funções organizacionais às necessidades das partes interessadas; e monitorizando os resultados, os desempenhos e o cumprimento do definido, confrontando-os com as metas estabelecidas.

Já as actividades básicas de gestão implicam planear operações, com base nas prioridades e os objectivos que a governança estabeleceu; executar planos, tendo em vista a gerar resultados de políticas e serviços; e controlar o desempenho, lidando adequadamente com os riscos.

Quer-se que, tanto a governança como a gestão, sejam competentes.

4. Depois desta introdução chata, mas necessária, deixem que vos diga que tenho preocupações. Com muitas coisas. A governação desgovernada que nos governa é uma delas. Temos falta de boa governança. De governo claro e transparente e para todos. Temos falta de gestão competente. Qualquer madeirense que olhe para os assuntos da Autonomia deveria conseguir lê-los, avaliá-los e concluir com facilidade. Infelizmente isso não acontece. Os assuntos da Autonomia carecem de bom governo. O que temos, nem é desgoverno. Muito pior. É um esquema em que alguns se governam muito bem. Um sistema onde, quase todos, saem prejudicados. Um método de enganar a maioria com pouco, fingindo ser muito.

Já por várias vezes aqui falei da boa governança. Vou continuar a fazê-lo, por estamos longe de a ter. Servem-nos coisas destituídas de compromisso com a integridade, despidas de valores éticos, tudo de legalidade, muitas das vezes, duvidosa. Veja-se, a título de exemplo, o caso do Secretário da Economia, Rui Barreto, que se recusou a tirar consequências de uma situação muito dúbia, aquando do empréstimo que contraiu, com outros militantes do CDS, nas últimas regionais. Chegou mesmo ao ponto de o não declarar ao Tribunal Constitucional. Tudo isto está errado. Se há quem ache que a integridade, os códigos éticos e a legalidade não foram tocadas neste caso, então admitimos que tudo é possível e não temos o que reclamar.

Quem aceita o compromisso, gerindo e representando os madeirenses, tem de aceitar o envolvimento absoluto na “coisa pública”. Tem de ser transparente e claro no que faz e no que diz. A definição de resultados tem que estar estruturada no médio e longo prazo, porque é aí que está o futuro, estabelecendo pontos de partida e de chegada. Determinar resultados em termos de benefícios económicos, sociais e ambientais apoiados na sustentabilidade. Definir relações de custo benefício e equacionar despesas de manutenção.

O caminho tem de ser preciso e, mesmo prevendo encruzilhadas inesperadas, deve determinar as intervenções necessárias para se alcançarem os resultados pretendidos. Regular, atribuir e fiscalizar. Fiscalizar muito e regular pouco. Atribuir o necessário.

Outro factor importante na boa governança tem a ver com a capacidade de gestão dos recursos humanos. Uma boa estrutura de gestão que recompense o mérito em detrimento do cartão do partido é uma boa prática. Tudo deve ser feito de maneira que se desenvolva e simplifique a capacidade da organização, potenciando as lideranças e os liderados. O que queremos são pessoas capazes, nos lugares certos. Mentalidades desempoeiradas e que não se achem os “donos da chave da retrete”. Competência acima de tudo e servir com dignidade os interesses de todos.

Avaliar competências está muito acima de coisas como o SIADAP, que está longe de ser uma ferramenta justa e de valor. É urgente criar outro sistema de avaliação que pontue o empenho, o desempenho, a proficiência, a participação, a competência, etc. Um sistema que faça a gestão de riscos e avalie a performance, apoiado em rotinas de controlo interno vigorosas.

O que está montado em termos de finanças públicas é uma enorme teia. Ninguém consegue perceber com facilidade o seu funcionamento. É um emaranhado de números, fórmulas, alíneas, taxas, taxinhas, impostos, emolumentos, etc., que o comum dos mortais não consegue entender. É cada vez mais importante que se criem metodologias que tornem tudo muito mais claro e transparente. A existência de um Portal de Finanças é essencial para uma boa governança, além de permitir o acesso à informação. O BASEGOV não chega. As boas práticas e a fiscalização por parte de entidades independentes que façam auditorias e elaborem relatórios, permitiria que a prestação de contas fosse efectiva.

Depois temos coisas como gestão de risco, eficiência, o primado da lei, responsabilidade, resposta em tempo útil, orientação para o consenso, participação, colaboração, formação, acesso à informação, inovação, liderança, integridade, equidade, inclusão, sucesso partilhado, as quais integram outros conceitos que têm a ver com uma boa governança.

Alguém descortina com facilidade alguma destas coisas nos sistemas de administração e governação regionais?

Falta-nos uma boa cultura organizacional.

5. Sabiam que a teorização que define o capitalismo foi realizada por Marx? O que faz dele o primeiro teórico do capitalismo? O liberalismo defende, sempre defendeu, a economia social de mercado, a equidade, o princípio do “mais aos que têm menos e menos aos que têm mais”. Moedas estáveis, austeridade fiscal, livre formação de preços, combate a oligopólios, monopólios e cartéis, e subsidiariedade. São estes alguns dos princípios do liberalismo que prezo, esse terrível sistema de mão invisível que governa mais de um terço da Europa, os países que registam maiores índices de desenvolvimento. Esse horrível liberalismo que tanto explora os holandeses, que nas últimas eleições deram uma vitória a um partido liberal e o segundo lugar a outro. O terrível liberalismo da mão invisível da Irlanda, que transformou o país, levando-o, de índices parecidos com os nossos há 30 anos, para o topo da escala europeia, enquanto por cá, com sucessivos governos socialistas, ficamos a ver navios e países com governos liberais a nos ultrapassarem todos os anos. Ou a Suécia, esse paraíso social-democrata onde nos últimos 30 anos os liberais têm estado mais tempo no governo. Ou a Noruega, onde também os liberais são Governo. O Luxemburgo. Finlândia onde partilham o governo com os sociais-democratas. Dinamarca onde liberais e social-democratas se não alternando no governo. Estónia que estava no rabo da lancha europeia e a quem agora vemos por trás. A Roménia? Deixem para lá.

6. Os neoliberais são, para certas pessoas, como os gambuzinos. Nunca ninguém os viu, nem consegue descrever, mas continuam à procura.

7. A imagem de hoje baseia-se na “Alegoria do Bom e do Mau Governo” de Ambrogio Lorenzetti, pintado entre Fevereiro de 1338 e Maio de 1339. Constitui-se em três frescos localizados no “Palazzo Pubblico” de Siena na “Sala dei Nove” (“Salão dos Nove”).