Quantos queres?
Toda a gente se acha séria, ninguém acha que comete erros e são todos vitimas do sistema
Esta semana, no meu passeio matinal que cumpro quase religiosamente para ir comprar pão fresco para o pequeno almoço, deparei-me com duas crianças, de mochila às costas e bibe impecavelmente aprumado, no jardim perto de minha casa, com o tradicional jogo de papel na mão. O grito entusiasmado do “quantos queres?” (provavelmente enquanto esperavam que as levassem à escola), chamou-me à atenção e levou-me para o tempo de outros tempos, em que eu próprio, que sempre tive pouco jeito para trabalhos manuais, pintava com as cores do arco íris os diferentes triângulos de papel, com desafios ou enigmas próprios da idade e que me ocuparam em brincadeiras de amigos, horas da minha feliz infância. Memórias de uma vida em que o telemóvel não existia e em que os jogos eram os do berlinde, da apanhada, do macaquinho do chinês (que a famosa série coreana “Squid Game” recuperou) , ou a macaca que serve de chão da entrada do “Sketch” um dos mais famosos restaurantes em Londres. Era uma época em que aprendíamos a respeitar os mais velhos senão estávamos “feitos ao bife” e em que a palavra ou um simples aperto de mão, selavam, regra geral, um acordo inquebrável entre duas pessoas, para quem o bom nome e a integridade estavam acima de qualquer valor monetário.
Este saudoso jogo e as crianças, transportam-me para o tempo em que vivemos em dois planos distintos mas que encerram em si, a mesma pergunta.
Dizia Sónia Tavares, vocalista da banda “The Gift” numa entrevista ao Expresso que “hoje é mais difícil criar um filho para não ser parvalhão, do que para ser doutor. Não me interessa nada o que o meu vai ser no futuro, desde que seja um tipo com valores”. Na realidade a nossa sociedade está cada vez mais formatada para criar grandes profissionais, para admirar os mais bem sucedidos e para instigar os mais novos a serem tremendamente competitivos para poderem singrar, enquanto isso vamo-nos esquecendo do essencial. Os valores, a condição humana do altruísmo, da partilha e de não valer tudo para chegar a onde queremos. “Quantos queres?” que são mentes brilhantes, grandes pensadores e trabalhadores altamente produtivos mas que como pessoas valem zero? Somos nós, os adultos de hoje que preparamos as crianças para vencer, custe o que custar, atropelando tantas vezes os outros, vivendo de uma forma obcecada para atingir aquele emprego. Somos nós que os ensinamos a colocar o dinheiro no centro do mundo, onde quem mais tem é melhor do que os que menos têm e em que prestamos pouca atenção ou desvalorizamos as boas atitudes, as práticas mais honestas e simples, que revelam excelentes seres humanos. Da mesma forma que colocamos num pedestal os intelectualmente mais inteligentes e muitas vezes os chicos espertos, sem que tenhamos uma palavra para demonstrações de inteligência emocional, para quem consegue criar bom ambiente, para os que não deixam ninguém para trás, muitas vezes custando-lhes chegar mais rapidamente à frente. Interessante a entrevista ao jornal de Leiria do antigo reitor do Santuário de Fátima, Luciano Guerra, em que chama a atenção precisamente para isso no seio da própria igreja, quando diz que “no atual programa do Santuário, o fito primário mais explicito são os intelectuais, mas a dedicação total à intelectualidade, não deixa espaço para a dedicação aos pobres”.
Esta falta de aproximação da realidade trespassa toda a sociedade e deslaça quem se dela serve para, sem apelo nem agravo, justificar os meios para atingir os fins. Entre a teoria e a prática vai todo um mundo. Nas ultimas semanas temos visto membros do Governo cair que nem peças de dominó. Sem querer retirar o peso de certo tipo de atitudes, a verdade é que as pessoas deixaram de ter vergonha na cara, porque o foco e a motivação, é ter mais, é ser mais reconhecido e mais bem sucedido. Não interessa como. Tendemos de uma forma um pouco quadrada a pensar que somos um povo bafejado pelo azar, em que os maus vão todos parar à política e os bons ficam todos fora dela. Se olharmos com um pouco mais de atenção percebemos que os políticos são apenas o reflexo do que se tornou a própria sociedade, focada nos objectivos materiais, obcecada com a imagem e com o estatuto e muito pouco direcionada para prestigiar os valores. “Quantos queres?”. Tornou-se normal a pequena mentira, o compadrio e o amiguismo e isto toca-nos a quase todos de uma forma ou de outra. Tornou-se tão normal que quem assume certos cargos, acha que certas mochilas do seu passado e presente que carregam às costas pouco interessam face ao que podem atingir. Toda a gente se acha séria, ninguém acha que comete erros e são todos vitimas do sistema. Alguns serão, provavelmente, mas muitos outros não. É por isso que a palavra de alguém hoje em dia vale muito pouco, um aperto de mão não tem qualquer legitimidade e andamos sempre desconfiados uns dos outros. Não são só os outros que estão mal, somos quase todos. É por isso que chegamos a este cúmulo, que é o de ver pessoas a assumir cargos públicos, sabendo que estão envolvidos em casos e esquemas que mais cedo ou mais tarde virão à baila, mas pouco se importam. Não lhes interessa, nem querem saber. Essas crianças que vi a brincar “quantos queres?” no parque, de olhar inocente e feliz serão os adultos de amanhã. Alguns serão políticos. De que forma podemos nós prepará-los para serem diferentes?