Crónicas

Tão cheia de imaginação

Quando havia dinheiro para o papel e para o barbante o meu irmão lá construía uma joeira bem vistosa

Eu sou de uma época de escassez. Não havia dinheiro, faltava a luz muitas vezes e para evitar transtornos tínhamos um depósito para água em cima do terraço. E a fazenda garantia que, com ou sem açambarcamento, não se passava fome. À mesa vinha o que dava a terra, mais as compras do mercado e, uma vez por outra, extravagâncias como iogurtes com pedaços de frutos silvestres ou fiambre cortado em fatias muitas finas, mas isso só às quartas-feiras.

A minha mãe fazia um desvio no supermercado Pró Povo, um estabelecimento a condizer com os tempos revolucionários e que, ainda assim, vendia iogurtes, chocolates, fiambre, queijo, aperitivos para as festas de anos e para servir às visitas, além de ter um corredor inteiro para champôs, gel de banho, sabonetes, desodorizantes e demais produtos de higiene adequados às pessoas modernas.

As pessoas modernas tomavam mais vezes banho, usavam perfume e não se contentavam com um frasco de litro de champô Foz com cheiro a maçã. A vida estava a mudar e a minha mãe, além de diversificar o que comia, ouvia muitos programas de rádio e seguia à risca os conselhos da minha prima Ana, que era professora primária e se formara nas novas ideias pedagógicas. E foi quando se descobriu que, afinal, não era boa ideia guardar os brinquedos, mesmo os mais caros.

A época podia não ser de fartura, mas, depois de uma ginástica financeira e de muito bordar, a minha mãe conseguia sempre maneira de comprar umas bonecas de cabelo lustroso e olhos azuis, das que choravam quando se virava de cabeça para baixo. E o meu irmão recebia carrinhos, uma vez até lhe deram um que funcionava a pilhas. A maioria dos miúdos, no entanto, só via os brinquedos. As coisas caras eram para poupar e, por artes de mágica, acabavam sempre por ficar dentro das caixas.

Lembro-me de ver esses brinquedos quando íamos de visita a casa de tios e primos. Havia sempre uma boneca dentro da caixa e em cima do armário, novinha em folha, a fazer de bibelô. Nós não tínhamos brinquedos guardados, quando nos davam eram nossos e podíamos fazer com eles tudo. Ver como eram por dentro, jogar à porrada, a imaginação era o limite. Muitos dos carros do meu irmão sofreram acidentes ou foram abertos com uma pedrada, sobretudo na altura em que queria ser mecânico.

As minhas bonecas acabaram vesgas por causa das porradas, muitas perderam os vestidos e, quando passei a idade, arrumei as sobreviventes dentro do armário do quarto. Não tinham roupas, estavam desgrenhadas e deixaram de chorar depressa. E tudo porque a minha mãe entendia que os brinquedos eram nossos. É claro que esta teoria tinha um senão, um pequeno problema. A minha mãe podia ser moderna nas ideias, mas no resto era como todas as outras mães do Laranjal. E, por isso, brinquedo estragado era brinquedo acabado.

Não havia outro, nem remédio a não ser chorar um bocadinho. O que acontecia quase sempre assim a meio de Janeiro e já sabíamos que só haveria novos em Dezembro. E brincar, nesses meses todos que faltavam, era pois uma questão de imaginação. Podíamos brincar aos índios e aos cowboys, construir arcos e flechas ou saltar do terraço da cozinha das minhas tias para a escada em lutas de cabos de vassoura que, na nossa cabeça, eram espadas reluzentes como nos filmes do Errol Flynn. E ainda podíamos ir espaço adentro numa nave igualzinha à do Caminho das Estrelas.

Quando havia dinheiro para o papel e para o barbante o meu irmão lá construía uma joeira bem vistosa. Ou aproveitava as canas para um carrinho e, nos dias de chuva, depois de escrever os nossos nomes nos vidros transpirados das janelas, brincavámos ao fundo do mar debaixo da mesa. Eu odiava ser o monstro, como não gostava de fazer de índio para morrer no final. Nos filmes os índios nunca eram o rapaz ou a rapariga do filme.

E, pelo Verão, quando íamos caçar rãs ao ribeiro, nem o meu irmão nem eu sabíamos que brinquedos tínhamos recebido pelo Natal. A nossa vida, naquele tempo em que faltava de tudo, parecia tão cheia.