Crónicas

O bom, o mau e a privilegiada

O conforto da maioria absoluta é, por vezes, pretexto para tentações pouco democráticas. Sabendo da tentação, António Costa prometeu uma maioria absoluta de diálogo. Vejamos se cumpriu. Pedro Nuno Santos, ministro das infraestruturas, faltou ao debate parlamentar sobre o novo aeroporto. António Costa, responsável pela política europeia, faltou ao debate sobre a União Europeia. O novo ministro da saúde não foi ouvido porque estava a entrar, e a antiga ministra não foi ouvida porque estava a sair. Oito meses depois, e ao contrário do que tinha prometido, a maioria absoluta do PS ficou a falar sozinha.

O bom: Immerse Global Summit

Sempre que a Madeira se abriu ao resto do mundo, prosperou. Foi assim na rota do açúcar, no desenvolvimento do turismo e na exportação de vinho. Mais do que opção económica, foi essa a sina que a geografia nos reservou. Demasiado pequenos para sermos auto-suficientes e demasiado distantes para competirmos com os concorrentes continentais. O espartilho insular que condiciona toda a economia madeirense, tornou-nos reféns dos transportes. Das ligações aéreas, dos porta-contentores, dos aviões-cargueiros, de tudo o que nos permita chegar ao resto do mundo, sem tornar o transporte mais caro do que o bem a transportar. Foi assim, até ao dia em que a economia digital dissolveu as fronteiras físicas entre países e aproximou o que antes era geograficamente inalcançável. Esse novo mercado global é uma oportunidade única, talvez inédita, para as regiões (ultra)periféricas como, por exemplo, a Madeira. Por isso, a realização de eventos como a Immerse Global Summit na Região coloca-nos no caminho certo para sermos um epicentro tecnológico no meio do Atlântico. Ao longo de 3 dias, estiveram na Madeira cerca de 3 mil participantes a debater os desafios da realidade virtual e aumentada, bem como as oportunidades oferecidas por esta tecnologia. É óbvio que o evento, isolado, não fará milagres, mas posiciona-nos da forma certa, como região disponível e interessada na inovação tecnológica. Essa disponibilidade dos decisores públicos, associada a infraestruturas tecnológicas de ponta e à formação especializada de recursos humanos, oferece-nos uma alternativa, cada vez mais urgente, à competitividade fiscal por força da ultraperiferia.

O mau: A União Europeia e o CINM

A prolongada tentativa de liquidação do Centro Internacional de Negócios da Madeira, é um testemunho de como Bruxelas e Lisboa olham para as suas ultraperiferias. Da perspetiva europeia, de forma simplificada, as empresas do CINM só poderiam beneficiar da redução de impostos pelos empregos gerados na Região e não no exterior. Para mais, essa redução fiscal só se aplicaria a lucros resultantes de atividades realizadas na Madeira. Já o planeamento fiscal agressivo promovido pela Holanda, Luxemburgo, Irlanda, Malta e Chipre continua livre, impune e sem investigação europeia que o belisque. Não se trata de beneficiar dos pecados económicos dos outros, mas apenas o reconhecimento de que para Bruxelas a ultraperiferia é, cada vez menos, justificação para um tratamento diferenciado. Do ponto de vista nacional, depois do Partido Socialista, em 2011, ter interrompido as negociações com a Comissão Europeia por novos benefícios fiscais para o Centro, a hemorragia de empresas do CINM tem sido crescente. O abandono por Lisboa de um projeto que deveria ser de interesse nacional, tem vários autores morais. Entre eles, o eurodeputado José Gusmão, que encontrou espaço e desfaçatez para vir à Madeira congratular-se com a decisão de um tribunal europeu que, essencialmente, fere de morte o CINM. Com representantes destes em Bruxelas, a Madeira e o CINM não precisam de inimigos.

A privilegiada: A Ministra da Coesão Territorial

O que começou num triste episódio de censura parlamentar, de que o PS já se demarcou, terminou numa discussão complexa sobre o alcance familiar do escrutínio aos governantes. Há duas dimensões para esse debate – a dos princípios e a do caso concreto. Vamos à primeira. A exigência de fiscalização da participação de políticos, e dos seus familiares, em negócios que envolvam financiamento público é essencial a qualquer regime democrático. No entanto, a linha que separa o controlo da legalidade da perseguição moralista a todos os titulares de cargos públicos é ténue e, por vezes, variável. É fácil confundir o princípio de que os políticos não podem ser privilegiados pela posição que ocupam, com a conclusão populista de que quem ocupa um cargo público está, necessariamente, diminuído nos seus direitos. O mesmo se diga em relação aos seus familiares. O resultado seria a promoção da profissionalização da política, cavando, ainda mais, o fosso que separa os decisores públicos da vida real. O foco deverá estar mais nos procedimentos, no reforço da transparência e na prestação de contas, e menos na personificação da discussão. Ainda assim, há uma inevitável dimensão pessoal para a questão. No caso da ministra Ana Abrunhosa, duas empresas do marido terão recebido centenas de milhares de euros em fundos comunitários, atribuídos por entidades tuteladas pelo ministério da mulher. Por duvidar da legalidade da situação, a própria ministra pediu vários pareceres jurídicos sobre a questão. Só essa necessidade deveria ter sido suficiente para que a ministra percebesse a gravidade da situação.