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Bis repetita

Os nossos que partiam, clandestinos, a salto, como se dizia, faziam-no de noite, em sítios ermos, guiados por passadoresos

Locução latina, em que se levanta a questão de saber se a repetição agrada. Daí o bis, o pedido de repetição da execução pelo artista, tão frequente nas salas de espetáculo.

Na História e nas estórias, o bis, a repetição, é frequente. Para os observadores atentos há sempre aquela sensação de “onde é que eu já vi isto”.

As cenas das filas de potenciais reservistas russos a tentar passar as fronteiras para evitar serem chamados a participar na “Operação Militar Especial” decerto desencadeou, nos portugueses da minha geração, o tal sentimento do déja vu, do já visto, nos anos sessenta e setenta do século passado.

Nessa época, conviveram os que cumpriram o serviço militar e os que a ele se furtaram, sem que de tal tivesse resultado uma clivagem na sociedade portuguesa. No fundo, era uma opção de vida: uns aceitaram o risco da guerra e três anos de suspensão das suas vidas; outros tornearam o problema, por razões políticas ou pragmáticas, abdicando de regressar à Mãe Pátria e ao convívio familiar até que a idade os isentasse da indesejada incorporação.

Muita água correu sob as pontes (no tempo em que a havia) desde o “para Angola e em Força”, que teve adesão significativa, até ao desalento e cansaço de um guerra sem saída, e com isso o País mudou radicalmente, quer pela Guerra, quer pela Emigração.

Mas ficou na memória dessa geração aquele dilema: partir ou ficar? Porquê e para quê? A resposta está tanto na transformação registada nos portugueses como na nostalgia do Império.

E este último sentimento é forte. Nele se baseia a retórica de Vladimir Putin, fundamentada no ressentimento do povo russo, nostálgico do tempo em que era pobre, mas heróico e temido.

Só que a sociedade russa mudou, tal como a nossa, por fatores internos e externos. A ideia do Império já não agita multidões, e é difícil aos russos compreender porque é que têm de massacrar um povo dito irmão, em nome da fraternidade. Não há vacina contra a Lógica.

Mas a fuga dos russos não é um bis, uma repetição das nossas fugas.

Os nossos que partiam, clandestinos, a salto, como se dizia, faziam-no de noite, em sítios ermos, guiados por passadores, sujeitos a captura pelas Guardas portuguesa ou espanhola. Como em “Cinco dias, cinco noites”, ou numa breve corrida, mas sempre em sobressalto e com a adrenalina em alta. O que vemos na Rússia são filas de quilómetros de viaturas, aguardando pacientemente a passagem da fronteira. Não muito diferente de uma passagem congestionada de emigrantes ou turistas, no dia um de agosto, de lá para cá, ou trinta e um, de cá para lá para lá.

Algo mudou naquela terra, desde a queda do Muro de Berlim.