Quando a decadência nos confronta
Tenho lido notícias e artigos sobre a miséria que se gerou na cidade de São Francisco, o que me inquietou, pois, se nada for feito neste momento nas nossas cidades, o futuro pode ser semelhante, na sua devida proporção.
A cidade de São Francisco apresentava, já antes da pandemia, níveis de desigualdade muito elevadas, que resultaram de um modelo liberal de desenvolvimento, em que o trabalho pouco qualificado tem pouco valor, ao contrário dos empregos gerados pela indústria digital e tecnológica.
Esta cidade turística da Califórnia, berço de algumas das maiores empresas dos Estados Unidos, tornou-se demasiado cara para alguém da classe média morar, tendo atirado para a rua milhares de pessoas da classe média e média baixa, que não tem capacidade para suportar os custos de uma habitação ou um quarto sequer. É a consequência da aplicação da lei da oferta e da procura, deixando o mercado atuar para a definição dos preços das casas, sem qualquer regulação.
Visitei São Francisco em 2002, que já era das cidades com mais sem-abrigo, mas ainda assim, uma cidade bela e pacífica e onde se circulava à vontade, sem sentir o perigo de ser assaltado ou ameaçado. Mas lembro-me na altura de ter falado com um residente que disse precisar de ter dois empregos para viver naquela cidade. Com a procura da cidade por parte de cada vez mais turistas e trabalhadores altamente qualificados e bem pagos, o custo de vida tornou-se insuportável para a classe média.
O bairro de Tenderloin é atualmente a face visível da miséria a que um cidadão pode chegar. A pitoresca Haight Street transformou-se num campo de lixo, dejetos e de pessoas em situação de sem-abrigo, que montam a sua tenda, e de toxicodependentes, o que levou a câmara de São Francisco a declarar em dezembro de 2021, estado de emergência naquela área.
Receio que, também nas nossas cidades mais turísticas, a desproporção entre o que as pessoas ganham e o que tenham de pagar para terem um teto digno possa comprometer o exercício de um direito fundamental como a habitação. Isso já é notório em Lisboa, onde há 43,6% das vagas nas escolas por preencher porque os professores em mobilidade não têm capacidade financeira para suportar os custos com o alojamento. O mesmo problema coloca-se aos estudantes de ensino superior.
No Funchal, temos a conjugação alguns fatores deveras preocupantes semelhantes aos de São Francisco: há muita desigualdade e pobreza, não se constrói imóveis a custos suportáveis; aposta-se praticamente no mercado de luxo e o consumo de novas substâncias psicoativas. Está formado um caldo propício para que o número de pessoas sem-abrigo aumente na nossa cidade.
Uma sociedade que não cuida dos seus membros confronta-se com a pobreza nas ruas.