O Rali da Vida (II)
Este texto deixou de ser o que era para passar a ser, outra vez, sobre o rali da vida. O primeiro que escrevi, em 2020, foi sobre a conquista do Miguel Nunes e como, nesse ano e perante uma pandemia cheia de incertezas, essa vitória, depois de um azar no passado, encheu-nos de esperança e recordou-nos que os sonhos, como o Rali Vinho Madeira, são uma festa de todos. Em 2021, as lágrimas do sucesso do Miguel deram lugar às da frustração e à ideia de que as lutas mais belas podem ser, por vezes, as mais inglórias. Que um segundo e um detalhe podem determinar um destino fatal. O ano passado, o imprevisto intrometeu-se na vida do rali.
Nos momentos altos e baixos dessa história, o Miguel Nunes era navegado pelo João Paulo, que entretanto passou a navegar o Pedro Paixão. Do João Paulo conheço a simpatia extrema com que sempre nos trata. Do Pedro Paixão conhecia apenas à distância a habilidade e a coragem supremas ao volante e a alegria contagiante com que sempre o víamos nas reportagens do Paulo Almada. Não conheci o Pedro, mas transportei da irmã, a Catarina, todas as características que fizeram dele uma figura unânime - primeiro, nas categorias do desporto automóvel por onde passou; depois, na categoria mais alta da vida. No caso do Pedro, o imprevisto intrometeu-se tragicamente no rali da sua vida.
No Rali Vinho Madeira deste ano, houve outro jovem que confirmou, logo na primeira curva da primeira especial, a rotunda Sá Carneiro, que a vida do rali reinventa-se sempre, porque encontra novos heróis - e lá estava o Miguel Gouveia para abrilhantar-nos a imaginação com espectáculo ao volante. Mas antes da última curva da última especial, o imprevisto intrometeu-se, desta vez, na vida do rali e, mais importante ainda, intrometeu-se também no rali da vida de uma criança.
Há muito pouca coisa que se possa escrever sobre a dimensão da tragédia. Sente-se mais do que se pensa, pensa-se melhor do que se escreve. Só há derrotados quando o rali da vida de alguém com tanto futuro pela frente termina de forma tão trágica, numa última corrida: a pequena Yasmin, a quem todos desejamos a paz e o conforto que imaginamos; os pais, a família e os amigos, a quem todos endereçamos forças para superarem a dimensão de uma dor que quase todos desconhecemos; o Miguel Gouveia e o Tiago Fernandes, esmagados pela dimensão do imprevisto, a quem enviamos ânimo para se tranquilizarem perante o sucedido; os pilotos socorristas, os gigantes Gonçalo Félix e David Santos, a quem agradecemos por terem feito o melhor que sabem, socorrer; os restantes pilotos, os organizadores e os entusiastas do automobilismo, para quem nada disto será indiferente. Conheço muitos intervenientes da vida do rali e sei que hoje todos sofrem com os capítulos duríssimos do rali da vida que se insinuaram numa e noutra, enquanto procuram encontrar melhorias possíveis perante o infortúnio do incerto.
O rali faz parte da vida dos madeirenses. Não há como ignorar como se intrinca na vida da gente: em pequenos com a família, mais tarde com os amigos e com a alegria dos reencontros de Verão. Por vezes, corremos riscos. Andamos depressa demais. Cometemos erros, temos lapsos e distracções. Humanos como somos, falhamos. Sofremos imprevistos. No final do dia, sobramo-nos uns aos outros para nos lembrarmos que, como as máquinas de que gostamos, não somos infalíveis. Somos o que somos: gente a percorrer o seu rali da vida, desejando o melhor antes da próxima curva e sabendo que entre a partida e a meta tudo acontece demasiado depressa. Corremos à espera de no final podermos ser, como o Alexandre Camacho, campeões à dimensão dos nossos sonhos.
Desta vez, depois de Paixão, a vida do rali perdeu a Vitória - e com isso perdemos todos no rali da vida. Que não faltem forças a quem mais precisa para superar esta adversidade.