Crónicas

Este grau de incerteza

O meu pai cuidava das levadas, refazia os muros que a chuva derrubava e ia, de foice ao ombro e pé no tornador, regar, que tinha começado o giro e não se podia perder as horas de água

As ameixas chegaram tarde, foi do tempo e de tudo o que anda trocado, mas agora acumulam-se em taças e baldes. Uma parte caiu pelas escadas e no carreiro que antes ia dar à loja do meu pai; outra está a cozer numa panela no fogão da cozinha. Não tem ciência, vão as ameixas e o açúcar ao lume sem garantias. O doce é sempre único, não se repete de um ano para o outro.

Tem aquele grau de incerteza da casa do Laranjal. Os quartos desafiam a simetria, as árvores dão fruto ou tarde ou cedo demais, os muros fazem curvas porque, na verdade, nada é mais complicado do que domesticar a natureza. Aqui chove muito, faz frio no Inverno e o calor sobe pelas paredes no Verão e isso deixa marcas no quintal, na casa e na fazenda.

As ervas crescem pelas fissuras do cimento tão depressa como as roseiras florescem, mesmo sem as podar. E é uma luta. Nunca foi de outra maneira, mas na infância a minha mãe fazia magia no jardim e o meu pai cuidava da fazenda, dava a impressão que não havia nem mato, nem ervas daninhas, que a ordem se estabelecia por si, sem trabalho e sem esforço.

É uma ilusão, daquelas em que embrulhamos algumas das nossas memórias. Se pensar bem sei que não era assim. O meu pai cuidava das levadas, refazia os muros que a chuva derrubava e ia, de foice ao ombro e pé no tornador, regar, que tinha começado o giro e não se podia perder as horas de água. E a minha mãe tirava tardes ao bordado para virar os vasos das orquídeas ao contrário.

As flores serviam para guarnecer a casa e para vender, que o dinheiro ia todo para debaixo do forro da primeira gaveta da cómoda. E a fazenda alimentava, enchia taças e baldes de fruta e legumes que daquelas latadas vinha muito. A minha mãe tentava variar, mas, no fim da época, as ameixas ou iam para doce ou caíam pelas escadas e no carreiro que ia dar à loja do meu pai.

Todos os anos cabia-me a função de limpar as escadas e o carreiro, dar ordem àquela natureza pouco dócil. O ritmo das coisas era indiferente à minha vontade e estivesse eu triste ou não, o que estava para acontecer acontecia mesmo. Como neste Agosto, o segundo sem o meu pai. Houve flores no quintal e frutas nas árvores. E, de cada vez que isso acontece, sinto que a memória do meu pai continua por entre estes quartos sem simetria, nos muros que separam os canteiros e na terra.

Está em tudo, até neste grau de incerteza que não permite garantir que o doce deste ano fica igual ao do ano passado.