100
... e assim chegámos ao número 100: a pequena aventura começou a 1 de maio de 2020, não é brincadeira, estávamos sob o jugo do covid, não sei se lembram, era o silêncio das máscaras e o ofício da reclusão — e a crónica surgia como pequena janela donde as palavras podiam debruçar-se, ajudar a romper uma opacidade demasiado pesada, era duro e durava imenso, covid e prescrições sanitárias ao almoço e ao jantar, enfim: lá acertámos, o “sr. direitor” e o escriba, a regularidade e o formato, para que a coisa fosse legível no ritmo do “dênotícias”, só essa reiteração das sextas não seria levada pelo que chamam a espuma dos dias, nem lavada de vez pelas marés sobre a areia por onde se escoa sem remédio todo o ruído do mundo, e assim foi pelos meses adiante — curioso é revisitar o fluir do tempo e dos temas, afinal era o dentro e o fora do escriba, naturalmente, a ideia era não abrigar (nas duas colunas) conversa de café, antes, dar uma brevíssima oportunidade ao pequeno milagre das palavras, por vezes súbita clareira de luz, dialogar com imaginável leitor sobre “o que fica do que passa” — título dessa primeira crónica e objetivo comum a todas; então lá fomos enfrentando, semana após semana, a recorrente angústia ante a página em branco, não sei se menos aguda que a do guarda-redes antes do penalti, mas a verdade é que o dilema volta sempre: qual o tema, que link possível com uma atualidade qualquer, e a ansiedade, que só se esvai quando o teclado tecla, depois a conversa segue rumo próprio, mas nada de perder de vista o frágil e o falível, escrever na areia dura pouco, alguém vai ler qualquer coisita, mas cuidado, duas colunas é duro de roer, nada de se espraiar; e então, tarefa ingrata, vem depois o “carpinteirar”, como se diz na gíria, cerzir as palavras, polir o texto, deixá-lo um dia mais naquele repouso eloquente com que o sentido vela as coisas, e então, sim, enviá-lo ao “sr. direitor”, missão cumprida; com a edição surgiam ecos benignos de leitores improváveis, por vezes os neendertais das redes davam um ar da sua graça, e o fantasma da desistência acenava todas as semanas, deixa-te disso, mas de novo a ansiedade, escrever é permanecer, há que avançar, sim, outro tema, outra crónica, lembro-me que a primeira foi a mais curta de todas, espaços em branco, mas um tipógrafo dos antigos dizia: basta que sim, o branco também se lê!, mas isso era naquele tempo, quando os jornais davam notícias e delas viviam, sem terem passado a produtores de espetáculos, teatrinho é bom e o povo gosta, o hábito já vem dos romanos, no essencial pouco de novo debaixo do sol, mas deixemos isso: semana após semana, voltar ao oficinal da crónica, nenhum propósito especial, só a coação íntima de escrever e publicá-la, mas ai ai, inclemente vinha a insónia, e a imaginação a gerar títulos e enredos (“a noite abre os meus olhos”, já diz Tolentino), sonhos breves da quase vigília traziam súbita iluminação e quase aplacavam a angústia antes do almejado penalti final — mas seria preciso ter o caderninho à cabeceira, nunca foi o caso, logo vinha o sol e derretia aquelas imagens quiméricas de atualidade surreal: imaginem até que, num desses sonhos lúcidos, um amigo subitamente porta adentro dizia que tinha acabado de chegar do dubai, mas de carro, basta que sim, e noutra madrugada vígil, de repente íamos já de teleférico para ver o rali da fajã das galinhas, mas cá nada, luz clara da manhã, só polígrafas fantasias, e as duas colunas sem mais espaço — meu deus, há que dar um intervalo nisto: pausa oficinal, e uma trégua à paciência dos leitores... Boas férias!