A menina
O Laranjal dos anos 70 podia ser cruel e era certamente mais impiedoso para as mulheres, sobretudo para as que ficavam por casar ou tinham o azar de nascer feias
Quando nasci as minhas tias encolheram os ombros, era mais uma menina e esse facto não inspirava ou trazia luz para o futuro. O Laranjal dos anos 70 podia ser cruel e era certamente mais impiedoso para as mulheres, sobretudo para as que ficavam por casar ou tinham o azar de nascer feias. E a primeira notícia que trouxeram do hospital para a minha avó foi de que menina ia ser morena. E isso não era bom.
Foram piores com o meu irmão que, ao que consta, era o bebé mais estranho do berçário, talvez por ter sido difícil nascer numa noite de São Martinho tempestuosa. “Foi dos trovões”, disseram às escondidas, mas demorou pouco até as encantar. E, quando eu cheguei, elas só tinham olhos para o rapazinho travesso que destruía os carrinhos com uma pedra só para ver como eram por dentro.
E foi esse rapazinho, que queria ser locutor de rádio e não sabia como ia caber inteiro dentro da telefonia, quem mais rejubilou. Acho que deixou de sentir só, é bom ter um cúmplice, alguém para partilhar problemas tão importantes como a quantidade de estrelas que há no céu ou o mistério do Menino Jesus não crescer. Nunca saberei bem o que terá sentido ao olhar-me no berço.
Sei as histórias que nos contaram depois, sei que prometeu dar-me tudo todas as vezes que o contrariaram. Com ele, eu ia ter o que quisesse, ia defender-me das injustiças e da maldade, sobretudo daquelas que o privavam de estragar as ferramentas do meu pai. Quando ele fosse grande, ai quando ele fosse grande, a minha vida seria outra e melhor.
Eu comecei a crescer debaixo da asa do meu irmão, que tanto protegia como me lançava na aventura. Em todas as memórias lá está ele. Ora a tirar-me do sério e a chamar-me gorda; ora à minha espera, preocupado, por causa do talho na cabeça que me obrigou a ir ao hospital levar pontos. E ter um irmão iluminou a minha infância, fez-me superar a indiferença de ter nascido mulher numa família de mulheres.
A força para os momentos em que tive de lutar contra os preconceitos, as ideias e os planos que tinham traçado. O meu irmão estava lá quando anunciei que ia estudar, quando disse que queria ser jornalista e o ombro para os primeiros dissabores, para defender o meu direito a namorar, a sair à noite. E foi o meu primeiro editor quando comecei a trabalhar, o primeiro a rever os meus textos e a acreditar que, por debaixo de todas as minhas inseguranças, havia um certo jeito para contar histórias.
Sei que mostrou a todos a minha primeira reportagem e, naquela maneira suave de falar, anunciou: “é da minha irmã” que a ele, o rapazinho que prometeu defender-me, nunca fez diferença que eu fosse menina. Não fez diferença para andar à porrada, para contar segredos, para discutir o futuro, trocar livros e partilhar o gosto de escrever. E ao aceitar-me, assim, tal e qual sou, cumpriu a promessa e deu-me o mundo.