Crónicas

Vicente e o Ambrótipo, Vicente em Ambrótipo: ensaiar a fotografia

Há duas semanas falei sobre uma técnica de registo de imagens fotográficas de meados do século XIX, o negativo em vidro com colódio húmido, líquido viscoso que ligava os sais de prata àquela superfície. Referia que, juntamente com o processo de impressão de imagens em positivo que recorria à albumina também como agente ligante, constituíram uma dupla imbatível na fotografia durante cerca de trinta anos, na segunda metade de oitocentos.

Ora, se albumina teve ainda aplicação em produção de negativos, também o colódio húmido a teve em produção de positivos diretos a partir de uma primeira experiência do francês Adolphe Martin. Em 1852, surge o Ambrótipo, positivo direto obtido através da colocação de um fundo de veludo ou cartão negro num negativo em vidro. A aplicação teve popularidade no retrato durante anos consideráveis, sendo o suporte da imagem frequentemente revestido com estojo, à semelhança do daguerreótipo e, inclusivamente, substituindo-se a este (o Ambrótipo era um método bem menos oneroso).

O exemplo de Ambrótipo que aqui trazemos está, no entanto, emoldurado e trata-se de um autorretrato de Vicente Gomes da Silva (1827 – 1906), fotógrafo profissional pioneiro no contexto madeirense a partir de finais da década de cinquenta do século XIX, e fundador do Atelier Vicente’s. No verso desse objeto que é a moldura, na sua forra em papel, podemos encontrar um texto manuscrito talvez não pelo próprio mas pelo seu filho Vicente, o segundo dos quatro “Vicentes” fotógrafos, onde se refere, além da data e local de nascimento do retratado, informações sobre a execução do mesmo enquanto resultado dos primeiros ensaios com a própria prática da fotografia, em 1856. Refere-se que aquele ano era o da “última peste”, talvez por estar indelevelmente associado à morte de Júlia, primeira filha do fotógrafo, provável vítima dessa mesma doença, a “cólera-morbus” (gastroenterite) que tirou a vida a mais de dez mil madeirenses. É, contudo, referido na inscrição que este retrato foi reenquadrado também pelo próprio Vicente Gomes da Silva a 24 de novembro de 1883, quando tinha portanto já cinquenta e seis anos e vivia não já na rua de João Tavira, onde o terá produzido, mas na “propriedade à Carreira”, que a partir de 1865 passa a acolher o seu atelier, hoje, Museu de Fotografia da Madeira.

Numa parte de um “caixilho” da primeira máquina fotográfica que lhe pertenceu e que hoje integra o rico espólio deste museu, surge uma inscrição semelhante, mas aí seguramente escrita pelo próprio, visto o texto estar na primeira pessoa do singular. É dito que aquele resto de caixilho pertencia ao primeiro aparelho fotográfico que teve no exercício da sua profissão de fotógrafo, que inicia um ano após a descoberta do “Colodio photographico por Mr. Archer, chimico inglez, que seguiu as sugestões de Nièpce, chimico francez.” Ou seja, é praticamente logo após a inovação do colódio húmido apresentada por Frederich Scott Archer em 1851, a qual, viabiliza uma muito mais rentável prática do retrato fotográfico em estúdio com fins comerciais (sobretudo devido à rapidez do processo, aos menores custos e à capacidade de reprodutibilidade das imagens face ao anterior daguerreótipo), que Vicente Gomes da Silva inicia a atividade profissional de fotógrafo que perdurará por mais três gerações naquela família. Acrescentou na inscrição que foi com aquele aparelho que retratou a “Imperatriz d’Austria, quando esteve na Madeira, na quinta da Vigia”, naquele que terá sido um momento importante na sua carreira, e que com ele fotografa “outros grandes estrangeiros e da terra, bem como muitos patrícios democratas” com quem, diz, “ganhei dinheiro bastante para me alegrar”.

Num gesto de revisitação da memória a que a fotografia é tão propícia, este pioneiro da fotografia na Madeira reflete sobre a sua própria prática, no âmbito da qual consta não só este autorretrato simbólico desses primeiros ensaios, mas igualmente outros que mobilizaram outras técnicas fotográficas. Estes talvez tenham visado explorar esses processos ou técnicas, mas não deixam de ser meios de explorar igualmente uma representação de si próprio, da performance da imagem de um “eu” ao longo das várias fases da vida, o qual, através da fotografia sempre se desdobra num “outro”.

Apontamento final sobre o Vicente Sénior e o Ambrótipo: no contexto do século XIX, a fotografia, técnica “mecânica” e a partir de dada altura reprodutível, foi não raras vezes aplicada em objetos e memorabilia diversa. A dimensão sensorial, háptica destes objetos que convidam ao toque ou cujos adornos personalizam, embelezam e dignificam o retrato, reforçam o seu papel afetivo e emocional. Vicente Gomes da Silva (Sénior) esteve, na atividade que desenvolveu no Funchal a partir da segunda metade do século XIX, implicado na produção de peças de joalharia com retratos fotográficos, as quais eram anunciadas na imprensa da época como uma das ofertas que a sua casa oferecia aos clientes, seguramente, “belos objetos híbridos”. É assim que são descritos na referência a uma publicação que aborda as suas particularidades, intitulada Forget Me Not: Photography and Remembrance, do historiador da fotografia neo-zelandês, Geoffrey Batchen. Esta data já de 2004 e cinge-se a referências provenientes de um contexto anglo-saxónico, para não dizer norte-americano. Se quisermos vislumbrar os retratos e o caixilho que mencionei nesta página, além de outras imagens, documentos e dados biográficos associados a este e outros “Vicentes”, de 1827 a 1957, veja-se o livro foto biográfico publicado o ano passado da autoria de Helena Araújo e de Vitor Luís, precisamente intitulado: Família Vicente.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.