Crónicas

Assumir a nódoa no vestido

«Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado, mas nada poderá ser mudado até que o tenhamos enfrentado.» James Baldwin

Já aqui, neste espaço, invoquei os professores e professoras da minha vida; mas hoje volto à minha professora de Filosofia Contemporânea, que me fez apaixonar por horizontes filosóficos que ainda hoje me acompanham. E se o faço de novo é porque quero testemunhar um episódio que ainda hoje me acompanha.

Eu estava incumbida de fazer a apresentação de um dos capítulos de «O monolinguismo do Outro», de Jacques Derrida, e posicionei-me, como os meus colegas com semelhante tarefa antes de mim, junto da Professora, em cima do estrado que quase todas as salas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra têm.

Iniciei de forma titubeante, completamente tolhida pelo nervosismo de fazer uma primeira apresentação oral naquela cadeira; não estava constrangida por fazê-lo perante os meus e minhas colegas de turma, com quem tinha uma relação de amizade e camaradagem bastante sólida, mas porque o fazia perante aquela Professora que tanto admirava. Ao fim de duas ou três frases, senti a mão da professora sobre a minha, e ouvi-a dizer à turma algo como «Vamos assumir a nódoa na gravata para deixarmos de estar concentradas nela: a Elisa está nervosa.» A partir daquele momento, descomprimi e consegui fazer a apresentação de forma bem mais solta e segura.

Lembrei-me deste episódio quando, há 15 dias, abri o Diário de Notícias da Madeira e deparei-me com a publicação do último texto que enviei. Mal conseguia acreditar que tinha enviado o ficheiro errado, que correspondia ao primeiro rascunho do texto. Durante algum tempo o engano atormentou-me aquele sábado: revia mentalmente as repetições que não foram corrigidas, o texto em bruto, a falta significativa de uma parte da conclusão que tinha sido radicalmente alterada desde aquele primeiro rascunho. Aquele não era o texto e, no entanto, ali estava ele, exposto com todas as suas falhas e omissões. Claro que já me tinha deparado com problemas nos textos que assinei ao longo destes dois anos e meio de colaboração: aquela gralha incrível que nos salta à vista assim que abrimos o jornal, aquele erro de concordância porque alteramos a frase e não corrigimos o que estava para trás… mas algo assim ainda não me tinha acontecido.

Entretanto apaziguei-me com o acontecido a partir do momento em que prometi a mim mesma que assumiria o lapso e que plasmaria esta semana o que faltou na crónica anterior. E cá estou, a replicar o que aprendi naquela aula de Filosofia Contemporânea há mais de 25 anos: assumir a nódoa no vestido é uma forma de nos libertarmos das amarras que nos tolhem a palavra. E de procurar corrigir o que correu menos bem.

Em primeiro lugar, o texto sobre o problema da habitação na Madeira, na sua versão final (a que não enviei para o Diário), tinha como título dois versos da canção popularizada pelos Xutos (mas que remonta a 1943 e cujos versos são de João Silva Tavares): «Modesto 1.º andar / a contar vindo do céu». Se assim o escolhi é pelo facto de haver o hábito de se dizer que a Madeira é um cantinho do céu numa visão romantizada repetida até à náusea pelas entidades oficiais, esquecendo que esse cantinho é, muitas vezes, um pequeno inferno para quem não consegue ter acesso a direitos básicos como é o da habitação condigna.

Em segundo lugar, o texto final não fazia apenas o diagnóstico do problema: o de que, quase 50 anos depois, o problema da habitação na Madeira aumenta em vez de diminuir, o que escancara o falhanço do rumo tomado pelo Governo Regional liderado pelo PSD.

O texto apresentava também, de forma sucinta, o que o PS-Madeira considera ser o futuro. Uma política habitacional de sucesso tem de ser norteada por três princípios fundamentais: equidade, sustentabilidade económica e sustentabilidade ambiental. Estes princípios materializam-se com o desenho de critérios de acesso transparentes, que prevejam a integração harmoniosa no território que garanta relações familiares e comunitárias saudáveis e dignas, que incluam equipamentos preparados para receber crianças, jovens, pessoas idosas e pessoas com incapacidades ou deficiências; a garantia de uma maior inclusão e harmonização social é estruturante. Também fundamental é garantir que os critérios de acesso contemplem a classe média, profundamente penalizada por um mercado imobiliário desenhado para uma realidade que não é a da maioria das pessoas que vivem na Região.

É preciso criar condições às pessoas para reabilitarem as suas propriedades quando não o conseguem fazer. A reabilitação do património edificado deve passar a ser regra, tal como a eficiência energética deverá ser uma realidade na maior parte das nossas habitações – e por isso também contemplada com instrumentos de auxílio a quem não o consiga fazer com os seus recursos.

Nada disto é possível se não houver uma sólida articulação com os municípios, com todos os municípios, que têm uma noção mais precisa das necessidades existentes e das abordagens mais adequadas para a implementação de respostas mais eficazes e satisfatórias para os seus e suas munícipes.

O problema da habitação, tal como tantos outros que a Região tem, não se resolve se não o admitirmos e enfrentarmos. Há dias foi publicado um texto em que se deplorava os indicadores negativos e em que se exaltava a ação governativa como sendo a de uma mentalidade vencedora. Mas uma mentalidade vencedora não é a que continuadamente tenta vender a ideia de que está tudo bem, não é a que procura esconder e desculpar os maus indicadores com comparações que em nada melhoram a vida dos e das madeirenses; uma mentalidade vencedora não é a que reiteradamente tem necessidade de afirmar uma superioridade em relação a tudo e todos, uma superioridade com contornos mágicos que requer um ostensivo abandono da razão.

Uma mentalidade vencedora, verdadeiramente vencedora, é a que assume os problemas porque sabe que só assim consegue começar a resolvê-los. Uma mentalidade vencedora é aquela que traça um plano para tornar a Madeira verdadeiramente Melhor, com maior justiça social.

Uma Madeira Melhor para todos/as. E não apenas para alguns.