O bom, o mau e o penitente
O que sobra ao Presidente em proximidade, afeto e disponibilidade, falta em conteúdo, dignidade e rigor
Ao arrepio da habitual cartilha sindicalista, o coordenador da União dos Sindicatos da Madeira (USAM) queixou-se da existência de demasiados apoios sociais na Região e do efeito negativo que isso teria na procura de emprego. Um dia depois, a Comissão Regional Contra o Aumento do Custo de Vida organizou um protesto queixando-se do exato oposto. Supostamente, a falta de apoio do Governo estaria a enviar milhares de madeirenses para a fome e para a pobreza. É certo que nem a USAM, nem a novel comissão regional, têm qualquer ligação com o Partido Comunista. Absolutamente nenhuma. Nada. Zero. Mas se tivessem era bom saber quem foi o camarada que não recebeu o memorando do Comité Central.
O bom: Conselho Superior da Magistratura
A credibilidade dos tribunais, e das decisões judiciais, depende, essencialmente, da sua independência. A teia apertada e intricada de impedimentos e incompatibilidades do Estatuto dos Magistrados Judiciais é prova disso. Mas até as teias mais estreitas têm o seu escape. Em Portugal, apenas nos governos de António Costa, foram nomeados 23 magistrados para lugares de confiança política. A questão não é de legalidade, até porque o Estatuto dos Magistrados não o impede, mas é inegável que a nomeação política de magistrados fere, por vezes de morte, a independência dos nomeados quando regressam à função judicial. Por esse facto, a proposta do Conselho Superior da Magistratura, de limitar a circulação de juízes entre a justiça e a política, é tão pertinente que até se estranha como só agora mereceu discussão. E não se pense que é apenas uma questão de legalidade ou de ética, é também de impunidade. Em 2016, a anterior ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, suspendeu, por breves horas, a função governativa, para tomar posse como juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. De seguida, Van Dunem voltou a suspender as funções de magistrada para regressar, qual lagarta transformada em borboleta, ao cargo de ministra. Alguém adivinha onde aterrou a borboleta depois de levantar voo do ministério?
O mau: Marcelo Rebelo de Sousa
Marcelo Rebelo de Sousa nunca teria sido um presidente como os que o antecederam. O seu percurso político sempre afastou essa possibilidade. O mergulho no Tejo, a condução de um táxi por um dia, o salvamento de duas jovens em apuros. Marcelo não é um presidente clássico, com toda a distância e formalidade que isso implica. As selfies em catadupa, os mergulhos descomprometidos, os afetos sem barreiras. Marcelo colocou a Presidência ao alcance do comum dos cidadãos e, com isso, ofereceu popularidade ao cargo que ocupa. O problema é que ao Presidente não lhe basta ser popular, sob pena de resvalar para a banalidade e arrastar a Presidência consigo. Terá sido assim quando, em visita ao Brasil, Marcelo optou por confundir uma viagem oficial com uma participação na campanha do antigo presidente (futuro candidato) Lula da Silva. Não se trata de dar razão ao desconvite com que Bolsonaro ripostou. Aliás, Jair há muito que provou o desprezo que nutre pelas regras democráticas. A questão é que Marcelo sabia que o encontro com Lula teria um significado político, um apoio velado à sua reeleição e, apesar de tudo, escolheu mergulhar o cargo no charco da política brasileira. E não é a primeira vez que Marcelo é traído pela ânsia da omnipresença mediática. Perante a hecatombe nas urgências dos hospitais públicos, Marcelo lembrou-se de pedir aos portugueses um esforço para evitarem as doenças neste verão. O que sobra ao Presidente em proximidade, afeto e disponibilidade, falta em conteúdo, dignidade e rigor. Embora a popularidade nunca tenha sido boa conselheira, Marcelo só se pode queixar de si próprio.
O penitente: Pedro Nuno Santos
Lembro-me da primeira vez em que ouvi falar de Pedro Nuno Santos. Corria o ano de 2011, o País estava na bancarrota e Pedro Nuno avisava os banqueiros alemães que se pusessem finos ou Portugal não pagaria as dívidas. Nem as pernas dos banqueiros tremeram, nem Portugal deixou de assumir as suas obrigações, mas a bravata de Pedro Nuno acompanhá-lo-ia até ao cargo de ministro no governo de António Costa e serviria de rastilho para o crescimento de uma ala mais à esquerda dentro do PS. Onze anos depois, o aeroporto substituiu os banqueiros alemães e a ameaça materializou-se num despacho que reescreveu toda a estratégia do Governo para a construção de novos aeroportos em Portugal. Tudo, supostamente, sem o conhecimento do primeiro-ministro. O resto já todos sabemos. O despautério aeroportuário prometeu a demissão de Pedro Nuno Santos, mas redundou na sua tenebrosa autoflagelação perante os portugueses e aos pés de António Costa. Foi-se a fanfarronice de 2011 e a Pedro Nuno restou a dura realidade. Nem os compromissos do País se rasgam, nem a maior obra pública das últimas décadas se decide de forma unilateral. Perante a enormidade do recuo, olho com perplexidade para a maleabilidade da coluna vertebral do ministro sacrificado. Como se dobra e retorce, sem nunca ameaçar partir e, dessa forma, permite a continuidade de Pedro Nuno num governo onde perdeu toda a autoridade. O problema não é de penitência mas de pragmatismo político. Pedro Nuno Santos fica como ministro porque acha que a sua carreira política tem melhores perspetivas dentro do Governo, do que fora dele. E porque Costa não se arrisca a criar um mártir.