Crónicas

Amor e tolerância

Numa época de extremos, em que parecem existir apenas dois lados que se digladiam e se odeiam vai faltando terminologia que nos aproxime e sentimentos que nos unam, nos transformem e nos ajudem a construir momentos e experiências movidos pelas boas intenções. Eu percebo que na ordem do dia estejam palavras mais impactantes como a ecologia, a sustentabilidade, o racismo, o machismo a ideologia de género ou a igualdade. E sei ver a importância das mesmas e a elas presto o respetivo relevo. Considero que devemos crescer enquanto sociedade e seres humanos para uma condição de maior justiça social, que o sofrimento de muitos no passado deve ser tido em conta para não cometermos os mesmos erros, que a procura cada vez mais feroz pelo dinheiro, pelos bens materiais e pela imagem que transmitimos aos outros nos faz atropelar e esquecer muitas vezes as relações que desenvolvemos uns com os outros. As nossas atitudes mudaram à medida que foram mudando as nossas prioridades, nem sempre com más intenções, provavelmente até com a noção de que não fazemos muitas vezes o mais correto, que magoamos os que nos são mais próximos e que com isso sofremos nós também.

Confundimos invariavelmente aquilo que é o amor que nos guia com o egoísmo latente, damos mais a pensar em nós próprios do que propriamente em criar experiências conjuntas, fazemos muito mais com o pensamento do que nos faz falta do que é mais importante para os que são importantes para nós. É a sociedade e os conceitos vigentes que nos impelem a isso, a que não serão com toda a certeza alheias as redes sociais onde o prioritário é parecermos em vez de sermos e em que é construída uma imagem de nós próprios bem longe da realidade. Vivemos num mundo instantâneo, que consome vorazmente a perfeição dissimulada, o culto do sonho que não existe e das imagens que não transmitem qualquer realidade. Com isso escondemos os nossos problemas, temos vergonha de assumir os nossos defeitos e os nossos erros, fugimos a sete pés das nossas fragilidades até porque quem nos rodeia também pouco ou nada quer saber delas. As pessoas cada vez têm menos tempo e paciência para o problema dos outros, para as dificuldades dos mais frágeis ou para as alturas difíceis que todos passam na vida. Isso leva-me a questionar onde foi que nos perdemos no meio de tanto ego, em que altura deixámos de nos importar com o que os outros estão a viver. A primeira pergunta para cada conversa é “então está tudo bem?”, mas se alguém responde “nem por isso”, logo fugimos do tema como se isso nos trouxesse questões que não estamos disponíveis para alimentar.

Perdemos a palavra tolerância, disfarçada no meio de tantas outras, deixámos de a utilizar e mais grave do que isso, deixámos de a praticar. Para além de não querermos saber o que os outros pensam não permitimos que os outros sejam ou pensem de forma diferente. Cancelamos pessoas e estimulamos uma cultura de ódio contra quem muitas vezes apenas pensa de forma diferente sem sequer dar o direito de se explicar ou de justificar as suas ideias. Não toleramos a verdade, não nos questionamos nem colocamos os assuntos em perspectiva, preferimos seguir a corrente e aniquilar os “monstros” que ousam dizer algo fora do sistema. Deixámos de ser tolerantes e paradoxalmente deixámos de querer um mundo diverso e multipolar quando apregoamos precisamente essas bandeiras. Entramos em contra-senso, falamos de liberdade sem permitir a liberdade dos outros e assumimos as nossas verdades como unas e inquestionáveis. Com isso perdeu-se a capacidade de assumir os nossos próprios erros porque deixámos cair uma das capacidades mais bonitas do ser humano. A de pedir desculpa e a de ser desculpado. Procuram-se pessoas perfeitas, que não erram, que não mentem, que não falham mas que também na verdade não existem. E por isso vivemos numa sociedade de desiludidos e frustrados com amplas disfunções emocionais.

Cada vez que se fala de qualquer tema e se coloca uma questão fraturante, tudo parece ser um incentivo à violência, tudo é visto como homofobia, racismo ou machismo e não há sequer o direito de conversar de uma forma pacífica nem de existir um espaço de discussão onde possamos falar abertamente sobre o que divergimos ou o que não concordamos. As pessoas não toleram as opiniões dos outros porque não toleram sequer os outros e a pandemia só veio acentuar isso mesmo. Muitos não se toleram sequer a si próprios e vivem plasmando as suas frustrações nos mais próximos. Estamos cada vez mais solitários, cada vez mais infelizes mais distantes e cada vez menos disponíveis para demonstrar amor e tolerância para com os outros. Sem eles somos nada e sem assumirmos a nossa condição de animal social que se relaciona e se apaixona, que erra e que se reconstrói podemos atingir tudo mas cá dentro existirá sempre muito pouco. Sem essa reflexão faltar-nos-á sempre qualquer coisa. Talvez o mais importante para sermos felizes. Sermos inteiros.