Crónicas

E veio o leste

A minha mãe seguia depressa, tinha trabalho para entregar e era melhor bordar na sombra da ameixeira amarela da entrada da casa do meu avô

No Laranjal o calor via-se no ar a tremer ao fundo, no fim do caminho. Os carros abriam sulcos no alcatrão quando passavam por nós. A minha mãe encostava-se muito, tinha medo de ser atropelada, enquanto o meu irmão saltava o muro atrás das lagartixas. A mim, mais pequena, mais gorda e com os pés enfiados nas botas ortopédicas, aqueles 300 metros de estrada tiravam-me o fôlego.

A minha mãe seguia depressa, tinha trabalho para entregar e era melhor bordar na sombra da ameixeira amarela da entrada da casa do meu avô. A nossa casa ainda não tinha árvores, ficava a tarde toda à mercê do sol, o calor subia pelas paredes, impiedoso, era impossível pensar ou trabalhar. A minha mãe tinha esperança nas duas laranjeiras, haveriam de crescer.

Mas o leste, que chegava de África com areia no céu, não permitia ficar. O bordado ia dentro do saco, a minha mãe andava depressa. Daquela vez era para se livrar do sol, mas também andava depressa para fugir do vento, da chuva ou por estar atrasada. Nunca a vi andar devagar, era como se soubesse que o que tinha para fazer não podia esperar, não tinha tempo e perseguia-a a ideia de que ia morrer nova.

O meu irmão subia e descia do muro, deitava mão a uma lagartixa gorda, das verdes. Às vezes metia no bolso das calças. E eu sabia que haveria de desaparecer pela ameixeira amarela acima onde, como os gatos fazem, montava uma espécie de posto de observação. Eu tinha as pernas mais pesadas, não me arriscava a trepar árvores e apenas desejava uma sombra, talvez me fosse estender na erva.

Eu não tinha propósitos, nem habilidades e nunca tive pressa, mas era bom ficar debaixo da ameixeira a pensar como o calor trazia aquele silêncio. Não se ouvia o ladrar de um cão, nem o cantar dos galos. Lembro-me de como tudo se calava, as pessoas e os animais. Aquela quietude que dava medo era apenas cortada pelas conversas da minha mãe e das minhas tias.

E falavam muito, tinham como que uma fonte inesgotável de assuntos e enchiam as tardes com histórias. Lembro-me de me sentar por ali, só para ouvir. Falavam de casas assombradas, de bruxedos, de amores contrariados. Riam-se e concluíam que as almas, quando iam para o outro mundo, não voltavam. E não sei se a minha mãe acreditava sequer nisso, no outro mundo.

Falar enchia aquele silêncio. E agora sempre chega este vento, que traz poeira e calor, traz também memórias do Laranjal, das tias e do ar a tremer no fim do caminho.